Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Sete Vidas Como os gatos

More than meets the eye

More than meets the eye

Sete Vidas Como os gatos

22
Jan08

Portugal e o medo

Rui Vasco Neto
Lá pelos idos de 1979, em pleno século passado, portanto, estava eu em Tel-Aviv mais um grupo de três amigos, todos armados em homens. O mundo era nosso e de mais ninguém. A vida sabia a rosas e sempre a pouco. A felicidade estava à mão em qualquer parte, a novidade era constante. Poupo-vos os detalhes da aventura, porque fomos, como fomos, onde estivemos e os meses de tropelias por terras de Moshe Dayan. Conto-vos um episódio apenas, porque a propósito da actualidade deste Portugal que é de todos.

Mal teria talvez passado um mês e já sabíamos as regras da casa. A primeira lição práctica tivemos na própria noite da chegada. Poucos minutos depois de estarmos os quatro sentados na esplanada do 'Café do Francês', ponto de encontro ao tempo dos portugueses em Israel, em plena Ben Yehuda, a principal avenida de Tel Aviv, vazia áquela hora, pára um tanque bem na nossa frente, do outro lado do passeio. Cena de filme, juro. Abre-se aquela escotilha em cima e sai um militar, que desce do tanque em três pulos e entra numa lojeca para comprar tabaco. Sai, a abrir o maço, entra para o tanque e arranca, numa normalidade que nos fez cair o queixo, chegadinhos do Portugal das revoluções com flores. Lição número um, convenhamos.

Pois cerca do tal quase mês depois, eu e o meu amigo Dinis Queiroz (vivinho da costa e ainda hoje uma peça de artilharia, digo, de antologia) embarcamos num autocarro, sete e pouco da manhã, percurso Ramat/Tel Aviv. Uma viagem de pouco mais de meia hora até terminar na central de camionagem cujo nome já me escapa à memória (era qualquer coisa diferente de Arco do Cego, isso eu sei, mas o sítio era parecido só que maior). Dormitámos no caminho, os dois. Acordados à chegada, saímos ainda ensonados e só despertamos para a realidade quando, depois de ter saído do autocarro e andado umas boas dezenas de metros, percebemos que se junta uma pequena multidão em redor do machibombo onde tínhamos viajado. Curiosos, voltámos para trás. Num ápice apareceu a polícia, muita polícia, grupo de intervenção com coletes e viseiras, uma escandaleira de se lhe tirar o chapéu. Tudo calmo, sóbrio, profissional, rotineiro. Ficámos para ver, claro. Nunca tinha visto um robot daqueles que eles meteram no autocarro, equipado com camera e detector de explosivos, manejado por controlo remoto por uma data de polícias deitados no chão no lado de dentro do perímetro de segurança. Nós, eu e o impagável Dinis, estávamos do lado de fora, suficientemente longe para estarmos seguros mas perto o bastante para vermos todos os pormenores. Quando finalmente sai uma das viseiras com colete e com um saco na mão, esquecido no autocarro, o meu coração gelou. Mas não tive tempo de dizer ai. O meu amigo Dinis, essa peça de antologia que não falava uma palavra de inglês, salta o cordão de segurança e corre aos gritos até ser detido: «Ize máine! Fachavor... ize máine..lanche...ize máine!!».

Não fomos presos, é certo, embora eu tenha passado a primeira de uma longa lista de vergonhas. Fomos expulsos de um Kibbutz, dois meses mais tarde, por aquela praga (de quem sou amigo ainda hoje) ter gasto as senhas de comida de um mês numa festa para uma namorada, gira e soldado do exército, que arranjou. Mas presos nunca fomos. Como acredito que não será o dono da mochila que hoje fez parar o metro de Lisboa por suspeita de ataque terrorista.

Pensei em Israel a manhã toda. Em como eram diferentes as nossas realidades enquanto países, na altura. E em como se vão tornando perigosamente semelhantes, nos dias que correm. Passaram vinte e oito anos, quase vinte e nove, pelas minhas contas, até eu ver parar o metro em Lisboa por medo legítimo do terrorismo internacional. Nessa altura, há vinte e oito anos atrás, eu sentia-me cidadão de um mundo que queria meu. Queria igualdade de respeito pela grandeza pátria e orgulho luso, o que ainda me parece razoável e legítimo. Mas hoje, muitos mortos depois, dei por mim a querer ser apenas um provinciano que mata o porco no quintal, bate palminhas no vira, faz cacholeira em casa, vai de cana por fumar e cozinha com colheres de pau à revelia do nunes. E que não se importa de estender a mão à gorjeta da civilização, do Algarve aos Açores, desde que façam o favor de deixar os meus fora dessa guerra que nos rouba a vida simples do dia a dia, numa explosão de nojenta crueldade, em nome de ideais que não aumentam a minha reforma nem reformam a minha saúde.

1 comentário

Comentar:

Mais

Comentar via SAPO Blogs

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Sete vidas mais uma: Pedro Bicudo

RTP, Açores

Sete vidas mais uma: Soledade Martinho Costa

Poema renascido

Arquivo

  1. 2013
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2012
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2011
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2010
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2009
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2008
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2007
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D