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Sete Vidas Como os gatos

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Sete Vidas Como os gatos

19
Nov07

Quem nunca comeu em hotéis que atire a primeira pedra?

Rui Vasco Neto
O Tribunal da Relação de Lisboa deu razão a um hotel que despediu um cozinheiro com HIV, apesar de ter pareceres científicos que negam a possibilidade real de contágio. Segundo o acórdão deste tribunal, citado pelo Público, a continuação do cozinheiro neste hotel representaria um «perigo para a saúde pública», uma vez que este vírus «existe no sangue, saliva, suor e lágrimas» e por isso, para este tribunal, o HIV poder ser «transmitido no caso de haver derrame de alguns destes fluidos sobre alimentos servidos ou consumidos por quem tenha na boca uma ferida».

Foi desta forma que os juízes da Relação de Lisboa confirmaram uma sentença do Tribunal de Trabalho de Lisboa, mesmo tendo à sua disposição dois pareceres científicos que negam alegados riscos de transmissão do vírus neste caso. Os três juízes desembargadores que assinam o acórdão da Relação - Filomena Carvalho, José Mateus Cardoso e José Ramalho Pinto - tinham ao seu dispor dois pareceres científicos, um deles pedido pela Coordenação Nacional para a Infecção HIV/SIDA ao Centro de Direito Biomédico. Nesse parecer lê-se que "não está provado que um empregado de uma cozinha possa, no exercício das suas funções e por causa delas, transmitir o vírus HIV".

A defesa de António juntou também documentos científicos da agência governamental americana responsável pelo controlo e prevenção da doença (Centers for Disease Control and Prevention - CDC), em que se diz que nunca ninguém foi infectado pelo HIV por transmissão ambiental e que as únicas formas de contágio conhecidas são as relações sexuais não protegidas, a via endovenosa ou por via materno-fetal. Nada feito, mesmo assim. A sentença do Tribunal do Trabalho refere-se ao documento do CDC mas desvaloriza-o dizendo que o caso em julgamento "não tem a ver com riscos conhecidos mas com a possibilidade desses riscos" e que o CDC refere que o vírus também está presente na saliva, suor e lágrimas, o que é verdade. O documento científico em causa refere, de facto, que o vírus pode ser encontrado laboratorialmente naqueles fluidos. Mas também nota que a transmissão por esta via é "zero", mais um dado científico que é ignorado pelo magistrado Martins Alves.

José Vera, responsável pela unidade de tratamento de HIV/SIDA do Hospital de Cascais, afirmou ao 'Público' que dizer que o suor, lágrimas ou saliva podem transmitir o HIV "é um disparate completo" e demonstra "uma grande ignorância dos juízes e, mais do que isso, quase uma teimosia em permanecer na ignorância". O médico diz mesmo estarmos em presença de "mentalidade da Idade Média" e "preconceito no poder judicial".

Inconformado com a decisão da Relação de Lisboa, o cozinheiro recorreu agora para o Supremo, na esperança de ver mudada a decisão inicial de despedimento. O que não se imagina que, mesmo acontecendo, possa alterar as condicionantes de um eventual regresso aos tachos e panelas daquele seu ex-local de trabalho. Por isso, quem disser que alguns direitos fundamentais deste homem foram seriamente beliscados não estará porventura longe da verdade. Tal como quem disser que provavelmente não escolheria um restaurante com um cozinheiro seropositivo para ir almoçar com a família é livre de em teoria defender a injustiça deste acórdão da Relação de Lisboa.

Aqui toda a gente tem uma aparente razão, apetece dizer. Mas sobram três factos, iniludíveis e gritantes. Um, este homem viu ser-lhe negado o direito a uma existência digna por um exercício de mero preconceito, em detrimento de testemunhos científicos absolutamente credíveis que provam a justiça e a justeza da decisão oposta. Dois, este acórdão é uma vergonha para a jurisprudência nacional e uma nódoa de gordura e medo na camisa da decência lusitana. Três, esta decisão da Relação vai seguramente merecer a aprovação, secreta e silenciosa, da esmagadora maioria da população portuguesa que tem cú. Condição primeira para ter medo, como é sabido.

Expostos os factos, ouvidas as partes, martelada a decisão, uma única pergunta mantém a pertinência, exigindo resposta. Afinal qual é o peso e a medida de um Estado que considera apta para o trabalho uma professora com três cancros, que afirma em juntas médicas sucessivas a não incapacidade laboral de um pedreiro que apenas sobrevive acamado e amarrado a uma botija de oxigénio para poder respirar, e que se borra na toga quando ouve falar de SIDA, pondo um ponto terminal na história da vida profissional activa de um ser humano, antes de um tempo que apenas se adivinha, não por "riscos conhecidos mas pela possibilidade desses riscos"?

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