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Sete Vidas Como os gatos

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Sete Vidas Como os gatos

20
Nov07

Chapadas pelo amor de Deus

Rui Vasco Neto
Deus fez os meninos e as meninas, os passarinhos e as flores, os rios e as montanhas, o mar e o céu. Em apenas sete dias deu provas de dispor de um ministério de obras públicas tão eficiente que andamos todos há milhões de anos a colher os benefícios de uma única semana de trabalho. Jesus Cristo ensinou o amor e a caridade até à exaustão na cruz, e contou com os apóstolos para passar as lições a limpo e contar a toda a gente para que o mundo fosse um nadita melhor daí para a frente. Agora, dois mil anos passados e com a profissão de apóstolo em queda no mercado de trabalho, o mundo continua a aprender mas pouco, escutando a Palavra da boca de gente que é voluntária como os bombeiros mas nem por isso caridosa como Cristo. Resultado? O fogo do inferno chamusca o céu, de quando em vez. E a terra treme de indignação.

Na noite de 1 para 2 de Julho de 2005, durante um acampamento de catequese em Castro Daire, um rapaz de 13 anos foi apanhado pelo seu catequista a infringir as regras previamente determinadas. Espreitara uma tenda de raparigas, o malandrote, coisa que era absolutamente proibida. O castigo foi imediato e de peso. Recebeu duas valentes chapadas do catequista, um engenheiro civil de Vila Nova de Gaia. À primeira ficou zonzo, tonto e abalado, à segunda caiu no chão e lá ficou. O resultado visível foi a abertura de um lábio e a cara inchada durante quinze dias.

Vá lá saber-se porquê, os pais do rapaz entenderam apresentar queixa contra este apóstolo da caridade cristã. Mas a procuradora do Ministério Público (MP) que ficou encarregada do inquérito afirmou que não tinha sido cometido qualquer crime de agressão. Argumentava o MP que as estaladas haviam sido dadas no exercício de um direito, que se integravam no “poder-dever de correcção” conferido a quem ministra a catequese, o que era causa de exclusão da ilicitude no sábio entendimento desta procuradora. E assim ordenou o arquivamento da queixa e mandou toda a gente em paz e que o Senhor vos acompanhe.

Os pais do malandrote recorreram então para o Tribunal da Relação do Porto, que este mês, num acórdão extenso onde até se questiona a legitimidade de um castigo corporal dado pelos próprios pais, teve uma posição completamente diferente da do MP. Tal como, aliás, já tivera o juiz de primeira instância, que decidira pronunciar o arguido contra o desejo da procuradora. “Considero não existir qualquer direito de castigo corporal por parte dos catequistas que possa ser invocado, no caso em apreço, como causa de justificação da conduta do arguido, que resulta como suficientemente indiciada”, disse mesmo o juiz de instrução num despacho onde acusava o catequista do crime de ofensas corporais simples.

O acórdão dos juizes Cravo Roxo, Dias Cabral e Isabel Pais Martins, passa não leve pelo cerne filosófico da questão. «É desde logo paradoxal que um catequista venha alegar que pode aplicar castigos corporais a alguém pretensamente sob a sua guarda, quando a própria moral e doutrina cristã proíbe qualquer forma de violência.». E segue desempoeirado para a essência legal da mesma. «Por outro lado, esquece o arguido os princípios e as leis constitucionais e internacionais de defesa dos direitos das crianças, que não devem, em situação alguma, ser sujeitas a violência física ou psicológica – princípios e determinações essas que estão bem patentes e referidos no despacho sob censura: Art. 69º da Constituição e Art. 19º da Convenção sobre os Direitos da Criança.Em conclusão, a acção do arguido é ilícita.» Ponto final.

Curiosamente, não seria de esperar grande coisa de uma decisão judicial superior para um recurso deste tipo de situação. Porquê? Porque ainda está quente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Março de 2006, que provocou grande polémica a propósito de um caso de agressão a crianças deficientes num lar da Segurança Social. Os nossos juízes conselheiros legitimaram a violência, considerando que se enquadrava no direito/dever de correcção: “Qual é o bom pai de família que, por uma ou duas vezes, não dá palmadas no rabo de um filho que se recusa a ir para a escola, que não dá uma bofetada (...) ou que não manda um filho de castigo para o quarto quando ele não quer comer?”, alegaram os doutos magistrados, numa decisão duramente criticada pelas instâncias internacionais que protegem os direitos das crianças. A educadora acabou por ser absolvida, apesar de ter fechado num quarto escuro uma criança que sofria de psicose infantil.

Neste caso houve um entendimento diferente da Justiça e ainda bem, que a catequese já tem inferno que chegue nas lições dos catequistas. Dispensará a violência física, estou certo, este estranho apostolado de engenheiros dedicados ao amor cristão mas com tolerância taliban. Quanto à santa madre, já há despacho pronunciado pela voz do vigário-geral da diocese de Lamego, cónego Joaquim Rebelo. «A Igreja condena todo o tipo de violência, tendo como princípio pregar o amor», afirmou o sacerdote, que até “condena” a atitude do catequista, salvaguardando no entanto que «às vezes é difícil manter a serenidade».

Deus fez os meninos e as meninas, os passarinhos e as flores, os rios e as montanhas, o mar e o céu. Saiu tudo lindo, divino mesmo. A Igreja fez os catequistas e alguns saíram com defeito, o que é apenas humano, paciência. Mas eu pergunto a mim mesmo se o ex-cardeal Ratzinger não teria este tipo de polícia da virtude em mente quando, agora papista, puxou as orelhas aos nossos bispos e se queixou da falta de empenho dos doutrinadores nacionais.

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