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Sete Vidas Como os gatos

21
Jul08

Uma carta de Fradique Mendes

Rui Vasco Neto

Estava no correio, hoje de manhã. Foi aquela que vi primeiro, mal abri a caixa. Mesmo de relance destacava-se sem erro do resto da correspondência (nunca percebi porque diacho há-de ele usar aqueles envelopes cor-de-rosa, para mais empestados em Lavanda, mas pronto). Abri. Trazia em anexo um bilhete do meu amigo: "Caríssimo, este Fradique é um chato. Desculpa-o. É da idade." O odor da Lavanda era mais intenso no papel da carta, que ostentava em oxórdio: «Carta a Rui Vasco Neto,  escrita a rogo de Carlos Fradique Mendes que, como se sabe, desde que morreu Eça de Queirós nunca mais pôde escrever.» Abri um nadita mais a janela, pousei o envelope cor-de-rosa e sentei-me a ler.

 

Em baixo: "Uma carta de Fradique Mendes"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá

  

(Carta a Rui Vasco Neto,  escrita a rogo de Carlos Fradique Mendes que, como se sabe, desde que morreu Eça de Queirós nunca mais pôde escrever.)

 

Decerto se lembrará Vª. Exª. de um fantástico acontecimento, de que dei conta em carta a Guerra Junqueiro, e que presenciei nas margens do Zambeze. Foi o caso de que Lubenga, um chefe tribal, estando em vésperas de começar uma guerra, decidiu impetrar ao seu deus familiar, ou Mulungu, que lhe valesse. Não sei em que espécie de céu vivem estes deuses menores, mas parece que as comunicações para lá não serão tão fáceis quanto as que se praticam entre nós. Não deixou porém de ser notável a solução do Lubenga, pois que, tendo chamado um seu escravo, o fez aprender muito bem as palavras que era preciso dizer, cortando-lhe de imediato a cabeça com um machado, ao mesmo tempo que ordenava “parte!” Foi-se, ou não se foi, o pobre mensageiro a dar o recado ao Mulungu, mas o chefe negro esquecera alguma coisa importante, pelo que teve de recorrer a um pós-escrito, o que custou a cabeça a um segundo escravo, a quem Lubenga berrou “vai!”, logo que lha decepou do mesmo modo, após bem o instruir sobre a celeste missão.
 
Cansa-se Vª. Exª. a dar recados urgentes a este país sem pressas, mas, tal como os do régulo moçambicano, que decerto não chegaram ao destino que ele esperaria, tampouco chegarão os seus, e não porque Vª. Exª. haja perdido a cabeça, por demência própria ou por loucura alheia, mas porque aqueles a quem os manda não a têm.
 
Nem com tudo quanto tem escrito, porém, estarei de acordo, por mais que a si lhe custe e a mim doa a confissão. Dou-lhe como exemplo do que digo o que V.ª Ex.ª pensa das lautas prebendas de administradores nomeados pelos sapientes senhores desta pátria, como se isso não fosse tão banal há tanto tempo, que já fez tradição ou consuetudinária lei. (Lembra-se do Pacheco, de quem tracei em palavras a exactidão do retrato?...) E é falso, desculpe que o diga com mais rigor do que dúvida, que o Estado não possa pagar tantos milhares por tão pouco serviço: tanto é verdade que pode pagar, que paga mesmo! Talvez não honre outros compromissos, mas ao cumprimento desses nunca se nega, pois aos nobres e burgueses sempre fizeram mais falta uns milhares de cruzados do que aos pobres uns patacos. Eles justificam-no. Podem não merecê-lo, mas justificam-no. Já imaginou quanto de trabalho, quanto de esforço, quanto de suor intelectual, penosamente, têm de produzir por uma só ideia?
 
Não lhe farei a apresentação do Dr. José Egas de Azevedo e Silva, que foi ilustríssimo e ilustrado escalabitano. Lembro-lhe, porém, um verso de um soneto seu, do qual, a respeito do responsável pelo desacerto da mente humana, consta a seguinte pergunta: (Quem) “deu à ideia o cárcere de uma fronte?
 
Pois, ilustre senhor, não há-de Vª Exª negar que tão notáveis frontes são dos cárceres mais seguros que pode haver. É mais fácil escapar do Limoeiro um assassino do que uma ideia sair, enxuta, triunfante, límpida, daquelas mentes. Por isso repito que não merecerão tantas prebendas, convenhamos, mas justificam-nas, sem dúvida.

 

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