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13
Ago08

O caso da Escola do Magistério

Rui Vasco Neto

Não, não é Perry Mason quem protagoniza 'O caso da escola do Magistério'. Nem foi Stanley Gardner quem me mandou o texto com a notinha em anexo: «Não encontro no Google o desenho do Georg Groz que refiro. No entanto podes ilustrar com outro qualquer dos seus desenhos a carvão», diz-me quem, quem? Diz-me Daniel de Sá, evidentemente, ele que esteve nas trincheiras desta guerra antiga e que agora vem recordando para nós alguns episódios meio esquecidos, que por aqui vão calhando em conversa enquanto corre Agosto. Hoje vamos até à cidade de Ponta Delgada do ano de mil novecentos e setenta e seis. Dois anos depois de Abril no contenente. 

Em baixo: "O caso da Escola do Magistério"

Sete vidas mais uma: Daniel de Sá

 

O ambiente nos Açores, sobretudo em S. Miguel, foi de grande perturbação nos anos que se seguiram ao 25 de Abril. Se a FLA intimidava, o PPD ia tentando controlar todo o poder político e cultural. E este não é um juízo subjectivo, é o resultado da observação directa e da experiência pessoal até. Não se pense, porém, que ao falar no PPD se refere especialmente Mota Amaral. Se este cedo começou a ser o “papa”, não faltaram outros mais papistas do que ele.

 

Em 1976, a Escola do Magistério Primário de Ponta Delgada tinha um corpo docente dos melhores que havia no País. Basta pensar em nomes como o do seu Director, Manuel Nóia, do Tomaz Vieira ou da Madalena Piteira, umas das mais credenciadas psicólogas portuguesas. Pessoas que tinham tanto de sérias como de competentes. No entanto, faltava-lhes uma ficha no partido “ideal”.

 

A oportunidade de correr com tal gente pareceu surgir de uma maneira inesperada, devido ao que foi considerado a existência de pornografia na Escola. Por esse tempo, as regentes escolares puderam frequentar a Escola do Magistério, fosse qual fosse a idade que tivessem. Uma delas era uma pobre senhora à volta dos sessenta anos, que dificilmente se poderia considerar psicologicamente normal. Ora ela ficou muito escandalizada com nove desenhos que representavam o feto humano em cada um dos nove meses da gestação. Não sei como ela terá contado isso a um colega professor, o certo é que este o entendeu como as várias posições do acto sexual. Outro desenho que a chocou muito foi um, feito a carvão por Georg Grosz, que representava a saída da fábrica dos operários às cinco da manhã, enquanto num bar um grupo de ricaços se divertia, havendo uma mulher com a saia subida de um lado e um homem a tocar-lhe a perna. (Imagine-se o erotismo de um desenho a carvão. Quem conhece Grosz facilmente entenderá a quase ingenuidade pictórica da cena.) Outra questão considerada grave pela senhora foi um texto sobre o amor escrito pela Fátima Senra, por sinal muito bem escrito, tanto mais que ela, na altura, tinha apenas 17 anos. Uma colega, para gozar com ela, fingiu um desmaio de emoção, o que a tal senhora interpretou como um ataque de histerismo. Quando, numa aula de educação física, essa senhora se queixou de que não tinha fato-de-treino, e que não encontrava nenhum para senhoras, um aluno do Magistério apontou para as calças e disse “Isto agora é tudo unissexo.” A pobre interpretou tal gesto como uma obscenidade.

 

Tudo isto foi sendo dito no jornal ”Açores”. Logo depois do primeiro artigo, veio um inspector do Ministério fazer uma inspecção para apurar a verdade dos factos. Por essa altura, eu pertencia à Junta Regional, o primeiro governo autónomo, nomeado para preparar as primeiras eleições regionais. Havia seis vogalias (correspondentes às actuais secretarias), sendo quatro do PPD e duas do PS, de acordo com a votação para a Constituinte. Eu tinha, na Secretaria da Educação e Cultura, o cargo de secretário (actualmente director regional) da Comunicação Social e Desporto.

 

Foi na sede desta vogalia que o inspector ouviu os intervenientes no processo. Ao terceiro dia da audições, o dactilógrafo destacado, não sei de onde, para os autos não apareceu, por ter adoecido. Não havia substituto, e nós não pudemos facultar-lhe nenhum, porque até a dactilógrafo que tínhamos era uma principiante e fazia falta para o resto do serviço. Eu, que dactilografava os meus próprios ofícios, cheguei a ajudá-la muitas vezes no seu trabalho. Ofereci-me para fazer de dactilógrafo, o que o inspector teve dificuldade em aceitar, mas, por não haver outro remédio, acabou por ser assim mesmo nos restantes três dias dos autos. Do que vim a escrever no jornal “Correio dos Açores”, e do que aqui disse ou direi, nada foi obtido pelos depoimentos, obviamente secretos. Por isso há momentos quase absurdos que ficarão sempre na minha memória e do inspector, e que desaparecerão connosco. Tudo o que usei no jornal foi-me contado directamente pelos alunos, quer em conversa pessoal quer numa gravação, que ainda conservo, e que pedi ao Mário Leandro para fazer, pois eu não tive disponibilidade para tal.

 

Houve uma sucessiva troca de artigos, que incluiu um comunicado dos alunos, o qual o “Açores” chegou a negar ter recebido, apesar de ter sido lá que o problema fora levantado. No entanto, foi esse o primeiro OCS a recebê-lo. O director depois pediu desculpa do lapso, dizendo que o funcionário que o recebeu se esquecera de o entregar, o que eu acredito sinceramente.

 

Para encurtar razões, digo que a discussão acabou com um golpe de sorte meu. Limitei-me a publicar o desenho de Georg Grosz e o texto da Fátima Senra, para que o público julgasse. Por coincidência (e essa foi a minha sorte) o outro articulista publicou no mesmo dia um resumo à sua maneira do texto da Fátima e uma descrição do desenho, essa sim verdadeiramente pornográfica. O caso ficou aí definitivamente encerrado. Pelo meio, o  enxovalho público dos alunos e alunas do Magistério, o desespero dos professores, e um derrame cerebral, felizmente ligeiro, do seu director, que era ainda jovem e não tinha qualquer problema de saúde.

 

Outras consequências? O articulista foi punido com uma repreensão grave, enquanto que uma das alunas (e já não me lembro se um aluno também), mais para serenar os ânimos das outras hostes do que por verdade da justiça, levou uma repreensão simples, por ter eventualmente falado em tom menos respeitoso com a tal colega que era muito mais velha do que ela.

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