Um estudo demasiado conveniente
Portugal vive nos dias que correm uma situação deveras preocupante na sua Justiça. É um facto, consensual até, dito assim. Mas há mais por detrás desta frase simplista que vem servindo de ariete entre os próprios agentes do sistema, gente que tem por função aplicar as leis feitas e pensadas para resolver os problemas do país em matéria de criminalidade. Por isso eu recomendo vivamente a leitura deste post de Pedro Sales, no seu 'Zero de Conduta', (mais os comentários pertinentes de Nuno Ramos de Almeida no mesmo post) que explica de forma superior aquilo que na minha modesta opinião deve ser dito e bem explicado nesta altura da vida do país. Por essa razão me faz quebrar a regra cá da casa de não reproduzir textos alheios, muito menos na íntegra. Só lamento se a Dra. Maria José Morgado não teve também ela a oportunidade de ler e reflectir sobre esta prosa antes de ir à Grande Entrevista de ontem, na RTP. Teria sido uma boa ajuda, estou certo, à prestação televisiva daquela (brilhante) magistrada.
Depois de semanas de regular presença televisiva a zurzir nas novas leis penais, que só faltou serem responsabilizadas pela praga do nemátodo da madeira do pinheiro, e eis que o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público “saca” de um estudo que, veja-se lá, vem confirmar as suas posições. Ou seja, as recentes alterações legislativas deixaram a sociedade “desprotegida”, existindo uma relação de causa efeito entre a sua aprovação e o aumento da criminalidade violenta, causada pela diminuição da população prisional e dos presos preventivos. Uma imagem de “brandura” que foi entendida pelo mundo do crime, resume o autor do estudo, apontando o dedo para a classe política.
E como é que o sindicato dos magistrados chegou a tão convenientes conclusões, suficiente para que meia imprensa tenha dito que a “reforma penal pode ter aumentado criminalidade”? Da forma mais simplista e atabalhoada que é possível conceber. Comparando a população prisional, e a percentagem da mesma que se encontra detida preventivamente, antes e depois da alteração dos códigos penais. Recorrendo aos números da última década? Não, aos dois últimos dois anos... Assim, e como o total de presos nas cadeias nacionais desceu 16% e as prisões preventivas passaram de 22,7% para 19,07% no último ano, o sindicato encontrou uma justificação “científica” para continuar a bater no seu saco de pancada preferido. Só que, como facilmente se percebe, o rigor deste “estudo” não se aguenta de pé três segundos. Em primeiro lugar fica por explicar como é que, tendo a criminalidade violenta subido 10% em relação a 2007, os seus números ficam ao nível da registada em 2006 ou 2004...muito antes da reforma legislativa. Nem explica, também, como é que países com uma percentagem muito superior de detidos preventivos, como a Itália ou a Turquia, têm indicadores de criminalidade violenta incomparavelmente superiores aos nossos.
A tese do sindicato parte de uma premissa que está longe de encontrar eco nos principais estudos. Ao contrário do que defendem os magistrados, que criticam a “brandura” das novas leis, a severidade das penas tem um reduzido efeito dissuasor da criminalidade, sendo mais relevante a ideia de que a pena será cumprida. Ninguém desata a assaltar bancos porque a pena baixou dos 15 para os 12 anos. Se fosse a dureza das penas que dissuadia os criminosos, os EUA teriam uma sociedade muito mais calma do que a nossa. Mas a taxa de homicídios nos EUA é de 5,7 por 100 mil habitantes, contra os 1,3 registados em Portugal no ano passado. O que deveria incomodar os magistrados portugueses não é a diminuição do número de presos preventivos - em si mesmo um indicador positivo -, mas sim a iniquidade de um sistema judicial cuja única resposta para diminuir a criminalidade é manter na cadeia milhares de pessoas que nunca foram julgadas.
Este “estudo” é apenas mais um instrumento na longa campanha encetada pelos magistrados para forçarem a revisão das leis penais com as quais nunca concordaram. Só que a separação de poderes não quer apenas dizer que o poder politico não se deve imiscuir no natural desenvolvimento dos processos judiciais. É uma estrada com dois sentidos e também quer dizer que compete ao poder legislativo a aprovação das leis e a análise dos efeitos da sua aplicação, sem a chantagem mediática de quem não hesita em cavalgar o sentimento de insegurança para alcançar os seus propósitos. Uma justiça governamentalizada é inaceitável, mas uma república de juízes resulta necessariamente na arbitrariedade da lei.
E é assim que uma alteração legislativa com menos de um ano está a caminho de ser desfeita numa ilógica manta de retalhos. Bastaram 2 semanas de noticiários televisivos. Daqui a uns anitos, quando surgirem 3 ou 4 casos mediáticos de presos que se encontram há anos na prisão sem nunca terem ido a julgamento, alguém se lembrará de olhar para a televisão e lembrar-se de revogar as normas que agora estão a ser redigidas em frente aos ecrãs televisivos.
(Pedro Sales, aqui)