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Sete Vidas Como os gatos

More than meets the eye

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Sete Vidas Como os gatos

24
Nov08

Ribeira Grande

Rui Vasco Neto

Tem andado um nadita ausente, o meu amigo Daniel de Sá. «Estou por aqui nada de férias, atarantado a escrever o livro que será para o Santo Cristo mas ainda não passei do lago de Genesaré, e pediram-me isto para antes do Natal», resolve-se a dizer-me, em recado privado. Perante um tal labor, onde, digam-me, onde arranjar lata e coragem para lhe cobrar este silêncio que a todos custa, a todos nós, meros fãs? Nem eu fui capaz de tal atrevimento, confesso. Mas também não houve necessidade, na mesma cestinha onde vinha esta nota lá estava, cuidadosamente embrulhado em panos quentes, este naco de prosa que se adivinha tão saboroso como os dois anteriores que nos levaram primeiro do Nordeste à Povoação e depois a Vila Franca do Campo, numa fascinante viagem pelos caminhos de S.Miguel. Guiados pelo passo seguro e conhecedor deste nosso viajante.

 

Em baixo: "Ribeira Grande"

Sete vidas mais uma: Daniel de Sá

 

Ribeira Grande. Bons tempos viveu ali o viajante. Que o tinha de ser todos os dias, excepto ao Domingo. Para aprender umas letras e outras ciências, no externato. O almoço possível era quase sempre na travessa por onde Gaspar Frutuoso teria passado milhares de vezes. A caminho da Matriz de Nossa Senhora da Estrela, de que era vigário. Homem culto, doutor por Salamanca, deixou a maior e quase única história que se conhece dos primeiros tempos de vida nestas ilhas. No salão nobre dos Paços do Concelho, há um painel de azulejos que lhe é dedicado e que sempre intrigou o viajante. O sacerdote é representado pregando no púlpito da sua igreja. O painel completa-se com umas alfaias agrícolas e uns símbolos da arte da escrita. E estas palavras como divisa: “Se eu soubera, não soubera.” Fácil de interpretar... Se Frutuoso tivesse aprendido a arte de cuidar da terra, não saberia a outra, a tal da escrita. Ou talvez não, quem sabe? E se aquela fosse uma confissão de que, se soubesse o que é o saber, preferiria não saber? Esse saber que nos torna cada vez mais conscientes da nossa ignorância, mais insatisfeitos. Esse saber que nos faz duvidar mais do que acreditar nas coisas que aprendemos.
 
Ao viajante vem com frequência essa tentação. Esse como que arrependimento de ter aprendido algo mais do que todos os meninos da sua terra que foram à pia do baptismo no mesmo ano que ele. Foi bom que Gaspar Frutuoso tivesse aprendido outros saberes, mais que de arado e sacho. Porque ele foi o único que contou coisas que, se não tivesse dito, ninguém saberia. Mas o viajante não aprendeu mais do que saberes já sabidos. As suas palavras não fazem falta sequer para uma visita de olhos cheios a este mundo aqui à volta. Ao viajante, a outro qualquer viajante, basta ir por aí acima e ver. O bailado das gaivotas na indizível lagoa do Fogo. A cascata de água quente da Caldeira Velha, que lhe fica a caminho. As outras fumarolas, ditas Caldeiras da Ribeira Grande. Os rochedos barrocos das Lombadas, com uma nascente de magnífica água mineral. A assombração do Monte Escuro. Ali, a terra ainda não teve tempo de disfarçar as mãos de fogo dos vulcões. E, apesar de tanto se ver da ilha lá em cima, o silêncio como que nos tapa a boca, proibindo a fala. Num certo ponto vê-se bem, mas mal se escuta, ao longe, uma cascata. Basta baixar a cabeça por detrás de umas queirós, que a altitude fez raquíticas, e já nada se ouve. Ou indo adiante, que não faltam sensações por aí fora. A ponta do Cintrão, arrojado cabo em miniatura; o miradouro de Santa Iria, de onde de repente se descobre como a ilha continua a desdobrar-se em dedos de terra entrando no mar, ou namoros do mar nas enseadas. E daquele lugar o viajante faz sempre um miradoiro também para a História. Foi nos montes à volta que se deu a última e maior refrega entre as tropas absolutistas e os liberais, que haviam desembarcado na Achadinha. Está logo à frente o Porto Formoso, com a sua praia que era o melhor ancoradoiro das bandas do Norte; e São Brás, rutilante; e a Maia, numa fajã vulcânica onde o sol falta menos vezes e o tempo é mais ameno do que longe dela; e a Lomba da Maia; e os Fenais da Ajuda, cuja elegante ponta anuncia, a nascente, que o concelho acaba pouco mais adiante, na Lomba de São Pedro.
 
Também o viajante entrou e ficou na igreja de Nossa Senhora da Estrela vezes sem conta. E ainda hoje, quando lá regressa, sente uma espécie de respeitoso temor. Aquele é um dos maiores templos dos Açores. Consta que, semelhantes, só a Sé de Angra e a igreja de São José, de Ponta Delgada. A devoção dos cristãos de outros tempos está bem expressa na profusão de altares. E a sua arte também, na abundante decoração. Ali se guarda o Arcano Místico, obra de Madre Margarida do Apocalipse. Informam-no agora de que, qualquer dia, irá para a casa onde ela viveu, depois que os liberais lhe fecharam, e às outras, as portas do convento, deixando-as fora.
 
Foi daquele lado da Ribeira que a povoação nasceu e começou a crescer, ainda no século XV. E, quando D. Manuel I a fez vila, por foral de quatro de Agosto de 1507, deu-lhe como limite uma légua em redor do pelourinho. Só no século XIX o concelho haveria de ganhar as dimensões que tem hoje. Até ser elevada à categoria de cidade, em 1981, a Ribeira Grande era composta apenas pelas freguesias da Matriz e da Conceição. Nessa altura foram integradas nela as da Ribeira Seca e da Ribeirinha, e, mais tarde, a de Santa Bárbara.
 
Cerca de uma légua para ocidente fica Rabo de Peixe, freguesia tornada vila em 25 de Abril de 2004. Sendo a mais populosa, apesar de uma inexplicável fama contrária é também das mais ricas. O seu porto de pesca é dos mais importantes dos Açores, sendo a sua fruta e os seus produtos hortícolas de excelente qualidade. Era nesta freguesia que ficava o velho aeroporto, um simples pasto que alimentava vacas quando não havia manobras de aviões. Um pouco adiante, as Calhetas e, a completar o concelho e a meia dúzia de quilómetros de Ponta Delgada, o Pico da Pedra. A paisagem é geologicamente das mais recentes dos Açores. Se tudo ali fosse como há 50 000 anos, uns instantes na evolução da Terra, o viajante não teria solo para pôr os pés. Então só havia mar entre o maciço das Sete Cidades e o da Serra de Água de Pau.
 

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