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Sete Vidas Como os gatos

More than meets the eye

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Sete Vidas Como os gatos

16
Out07

Triste e pior

Rui Vasco Neto
No dia em que o 24 Horas publicou aquela capa que dizia "Agarrem-nos" em cima das fotos de dois homens, eu senti um arrepio na espinha que me traz direito. Os dois visados eram, garantia o jornal nesse dia, os responsáveis pelo assassinato violento e estúpido de um jovem agente da PSP na Amadora, um crime que apenas poucas horas antes tinha abalado o país inteiro. A suas caras estavam agora na primeira página de um jornal diário com um apelo explícito à sua captura. E um apelo implícito à justiça popular. No dia seguinte o 24Horas lá trazia, em página interior, a explicação que não senhor, por acaso até não eram aqueles os assassinos, mas que já agora aqueles também eram pretos e por acaso um deles até tinha cadastro. E pronto.

Vinte anos de jornalismo foram-me ensinando as regras da arte. Continuo a aprender. Vou cumprindo sem grande incómodo na eficácia. Entendo que elas definem o essencial a seguir para fazer obra asseada. Não sou santo. Gosto é de fazer bem o que tenho que fazer. E de dormir bem com aquilo que faço. Quando chamei 'Nunca pensei dizer isto' ao post anterior estava a ser sincero.



O caso de 'Vico' é exemplar. Num tempo em que pedofilia é um dos palavrões mais repetidos no mundo, 'Vico' fez-se ao desafio. Mais que um pedófilo, 'Vico' quis fazer história no lodo. Vai daí publicou uma foto na Internet. Duas. Três, quatro, dez, setenta, duzentas fotos no total, mais coisa menos coisa. Têm número certo, o que é mais do que se pode dizer sobre as suas vítimas, cuja amostra publicada revela terem a partir de seis anos, isso sim. Mas não diz quantas foram. As fotos mostram só uma parte do que 'Vico' teve oportunidade de lhes fazer, onde tocou, como tocou, o que inventou mais o que pôs e o que tirou. E mais. Mostram aquilo que por decisão consciente, sua e de mais ninguém, ele quis que o mundo inteiro soubesse que tinha feito. O seu retrato risonho e maroto, que agora corre mundo sem máscaras de tecnologia, foi afixado pela sua própria mão no quadro global da Internet, onde a humanidade vai ás compras e aproveita para ver se há quartos para alugar e casas para vender. 'Vico' quis que todos nós soubessemos que há putos para comer ao almoço dos tarados mais espertos. A coisa correu-lhe mal.



A questão da certeza na identificação também tem contornos únicos. Numa estreia absoluta, a Interpol lançou um apelo mundial para a identificação daquele rosto das fotos já descodificadas. E as respostas chegaram, certeiras e credíveis, de inúmeras fontes em nada menos que três continentes por onde 'Vico' vem caçando no seu safari. O homem é definitivamente aquele. E quanto mais gente conhecer a sua cara, mais rápida será a sua localização, dizem. Acossado numa dimensão nunca vista, menos fotos novas serão tiradas, tem lógica. Tudo isto é rigorosamente verdade, estou em crer. Nada disto me deixa mais feliz com o facto de ter dito o que nunca pensei dizer.



Quando o assunto é pena de morte eu voto não sem hesitar. Acredito firmemente que não se mata o mal com choques ou injecções, e duvido com a mesma firmeza da infalibilidade total e absoluta da minha espécie. 'Há apenas duas coisas infinitas', dizia Einstein, 'o Universo e a estupidez humana e quanto ao Universo não tenho grandes certezas'. Pois. Porquê então este desejo assumido que 'Vico' conheça os prazeres da vida no cárcere, este assomo de bestialidade que me pesa e incomoda? Estupidez humana? É possível.



Com uma única excepção, não me recordo de nenhuma outra situação mais terrível, dolorosa e humilhante que um ser humano estar encurralado num redil de fraqueza e impotência perante o abuso sexual continuado d'um e d'outro, uma e outra e outra e outra vez. Como muito provavelmente irá acontecer com 'Vito', suspeito, em qualquer estabelecimento prisional para onde acabe por ir. A única excepção que ressalvo é se esse ser humano fôr uma criança de seis, sete, oito anos, sei lá, escolham a idade onde começa e acaba a inocência e vejam-na rasgada em pequenos pedaços espalhados por duzentas fotos que se riem nas barbas do mundo inteiro. Não consigo vislumbrar sequer um vírus mais terrível e infeccioso que este. Essa é a excepção na minha regra, pelos vistos. Fica por aqui o meu lado misericordioso?

Já sabia não ter todas as respostas para todas as minhas dúvidas. Descobri foi dúvidas novas, nem melhores nem piores. Pensei-as e resolvi cada uma dentro de mim como se fosse Deus a remendar rasgõezinhos pequeninos, um por um, neste tecido que sou. Como se calhar Deus podia remendar, que me perdoe o palpite, esse rasgão sem fim feito coisa corriqueira em todas as cadeias e que me faz pensar que, a ter que existir, então assenta como uma luva no fatinho que 'Vito' escolheu para si próprio. Não vejo ninguém mais indicado para a provação que ele. Fico de bem comigo nesse particular. Mas infinitamente mais triste com a descoberta irreversível que sou afinal bem pior do que pensava.

RVN


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