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Sete Vidas Como os gatos

04
Mar08

As esponjas das lágrimas

Rui Vasco Neto

Todos os que partem para qualquer conversa, de café que seja, apoiados na velha muleta da 'justiça social', usada a eito por tudo e por nada, ao menor tropeço, a propósito ou nem tanto, com intenção de malabarismo político ou por mera compulsão de entretenimento, todos deveriam ler esta prosa modesta de Daniel de Sá. Em escassas linhas, o escritor faz fotografia e revela-nos o retrato desse imenso abismo de diferença que separa duas visões antagónicas da mesma Vida, duas formas opostas de a viver: quem recebe pelo seu esforço, que vende, e quem, para o comprar, impõe o preço e as suas condições. Uma história velha como a Humanidade. É todo um mundo de diferenças neste retrato. O nosso mundo, este em que vivemos.

Em baixo: "As esponjas das lágrimas"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá


Ficaram os dois no canto sem que ninguém os contratasse. António, porque era muito novo, o José “Pinta a Pulga”, porque já era velho. Aquela era a primeira vez que António oferecera o corpo para ser avaliado músculo a músculo, tinha muito tempo ainda para esperar que as coisas mudassem. Mas ao outro já iam recusando a oferta de vez quando, dias de ganho a menos a somar aos de chuva e de nada haver nas terras para ser feito.
- Um velho também come... Foi o lamento do “Pinta a Pulga”. E meteu pela rua abaixo enquanto António ficava no canto a olhar os últimos homens que partiam para mais um dia de pão garantido. Vinte passos dados, se tanto, o “Pinta a Pulga” voltou para trás.
Vou falar com o senhor Vicente. Pode ser que ele tenha a caridade de me dar trabalho hoje.
António debatia-se com a velha raiva que sentia contra o senhor Vicente. Via o pai trazido numa padiola, mal limpo o sangue da cabeça, e, uns dias mais tarde, a mãe, que não parara de o chorar ainda, toda vestida da cor da casa, a agradecer como grande esmola as últimas três maquias de milho que ele ganhara antes de cair pela Rocha do Tamujo. Mas o orgulho é um luxo para os pobres. A mãe e as irmãs tinham bocas para alimentar e corpos para cobrir, e António não era menos apressado na hora de ter fome, embora menos exigente no ano de vestir. Cuspiu o orgulho com a saliva e disse que sim.
– Não tenhas vergonha, rapaz, nem esmoreças. Tens a vida toda pela frente, ainda vais ser dos primeiros a serem escolhidos, não tarda nada. Eu é que vou cada vez para pior.
Fora isso que pensara, mas, quanto à vergonha, não era por ela que ia acabrunhado. Era por aquele orgulho sempre cuspido ou engolido, no silêncio dos pobres, sabendo que o senhor Vicente lhe contaria as horas uma a uma, os quartos de hora, até a noite preparar a cama onde havia de deitar-se o Sol. Tentou por isso uma desculpa para evitar a humilhação a que estava quase resignado a submeter-se.
- Mas o tio João já não pegou nos homens de que o senhor Vicente precisa?...
Referia-se ao capataz do senhor Vicente, que era sempre o primeiro a escolher os trabalhadores.
– Pois pegou. Mas o senhor Vicente é capaz de nos dar um jeito...
E disposto a dar um jeito estava, mas só a um, ao rapaz, impondo a sentença de mandar o velho embora. António pensou que talvez o fizesse por remorso antigo, e lutou na indecisão de acompanhar o “Pinta a Pulga” no regresso triste, enfrentando o orgulho da sua raiva arrimado ao pensamento da necessidade da mãe, das irmãs e dele mesmo, e à vergonha de voltar para casa sem ter sujado o sacho nem derramado uma pinga de suor. O senhor Vicente tinha o cerrado das Canas Vieiras para cavar, mas tinha de ser bem cavado, fundo, e sentenciou que o “Pinta a Pulga” não podia fazer o serviço como ele queria. E, apesar de saber que António estava muito acostumado a trabalhar com o padrinho desde que o pai morrera, mostrou-se um pouco desconfiado também a seu respeito. António disse:
- Se o senhor Vicente quiser, cavo-lhe esta terra a trato.
– Olha que cinco homens cavam esta terra num dia. Podes levar sete ou oito que só te pago cinco, entendeste?
Entendeu e aceitou. E esfalfou-se de crepúsculo a crepúsculo, com a velha raiva sempre no fio do sacho, como se a cada cavadela pudesse atingir a alma do senhor Vicente. Quatro dias bastaram para fazer o serviço que era feito por cinco homens num dia. Na hora de pagar, o senhor Vicente mediu alqueire e meio de milho.
– E as outras seis maquias?
O senhor Vicente, em tom de justiça definitiva, bem lembrado de que aquele era serviço de cinco homens num dia, respondeu:
– Pensas que eu sou tolo ou quê? Não foi só quatro dias que trabalhaste? Aí tens.
António não encontrou modo de dizer a sua revolta, o seu desprezo. E foi o senhor Vicente que lhe despejou em cima:
– O que essa canalha me tem roubado! Um fedelho como tu cava-me a terra em quatro dias, e andavam para aí sempre cinco malandros a fazer ronha para aguentarem até às trindades!
António sentiu vontade de o esganar. Ainda disse, a medo:
– Mas o trato não era de me pagar como se fosse cinco dias?
– Isso era se levasses mais tempo a cavar. Ou querias ganhar cinco dias em quatro? Ou amanhã ganhavas o dia sem trabalhar porque eu já tinha pago adiantado?
António foi-se embora sem ter dito mais nada porque tinha as esponjas das lágrimas quase a rebentar-lhe nos olhos.

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