Todos os que partem para qualquer conversa, de café que seja, apoiados na velha muleta da 'justiça social', usada a eito por tudo e por nada, ao menor tropeço, a propósito ou nem tanto, com intenção de malabarismo político ou por mera compulsão de entretenimento, todos deveriam ler esta prosa modesta de Daniel de Sá. Em escassas linhas, o escritor faz fotografia e revela-nos o retrato desse imenso abismo de diferença que separa duas visões antagónicas da mesma Vida, duas formas opostas de a viver: quem recebe pelo seu esforço, que vende, e quem, para o comprar, impõe o preço e as suas condições. Uma história velha como a Humanidade. É todo um mundo de diferenças neste retrato. O nosso mundo, este em que vivemos.
Em baixo: "As esponjas das lágrimas"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá
Ficaram os dois no canto sem que ninguém os contratasse. António, porque era muito novo, o José “Pinta a Pulga”, porque já era velho. Aquela era a primeira vez que António oferecera o corpo para ser avaliado músculo a músculo, tinha muito tempo ainda para esperar que as coisas mudassem. Mas ao outro já iam recusando a oferta de vez quando, dias de ganho a menos a somar aos de chuva e de nada haver nas terras para ser feito.
- Um velho também come... Foi o lamento do “Pinta a Pulga”. E meteu pela rua abaixo enquanto António ficava no canto a olhar os últimos homens que partiam para mais um dia de pão garantido. Vinte passos dados, se tanto, o “Pinta a Pulga” voltou para trás.
– Vou falar com o senhor Vicente. Pode ser que ele tenha a caridade de me dar trabalho hoje.
António debatia-se com a velha raiva que sentia contra o senhor Vicente. Via o pai trazido numa padiola, mal limpo o sangue da cabeça, e, uns dias mais tarde, a mãe, que não parara de o chorar ainda, toda vestida da cor da casa, a agradecer como grande esmola as últimas três maquias de milho que ele ganhara antes de cair pela Rocha do Tamujo. Mas o orgulho é um luxo para os pobres. A mãe e as irmãs tinham bocas para alimentar e corpos para cobrir, e António não era menos apressado na hora de ter fome, embora menos exigente no ano de vestir. Cuspiu o orgulho com a saliva e disse que sim.
– Não tenhas vergonha, rapaz, nem esmoreças. Tens a vida toda pela frente, ainda vais ser dos primeiros a serem escolhidos, não tarda nada. Eu é que vou cada vez para pior.
Fora isso que pensara, mas, quanto à vergonha, não era por ela que ia acabrunhado. Era por aquele orgulho sempre cuspido ou engolido, no silêncio dos pobres, sabendo que o senhor Vicente lhe contaria as horas uma a uma, os quartos de hora, até a noite preparar a cama onde havia de deitar-se o Sol. Tentou por isso uma desculpa para evitar a humilhação a que estava quase resignado a submeter-se.
- Mas o tio João já não pegou nos homens de que o senhor Vicente precisa?...
Referia-se ao capataz do senhor Vicente, que era sempre o primeiro a escolher os trabalhadores.
– Pois pegou. Mas o senhor Vicente é capaz de nos dar um jeito...
E disposto a dar um jeito estava, mas só a um, ao rapaz, impondo a sentença de mandar o velho embora. António pensou que talvez o fizesse por remorso antigo, e lutou na indecisão de acompanhar o “Pinta a Pulga” no regresso triste, enfrentando o orgulho da sua raiva arrimado ao pensamento da necessidade da mãe, das irmãs e dele mesmo, e à vergonha de voltar para casa sem ter sujado o sacho nem derramado uma pinga de suor. O senhor Vicente tinha o cerrado das Canas Vieiras para cavar, mas tinha de ser bem cavado, fundo, e sentenciou que o “Pinta a Pulga” não podia fazer o serviço como ele queria. E, apesar de saber que António estava muito acostumado a trabalhar com o padrinho desde que o pai morrera, mostrou-se um pouco desconfiado também a seu respeito. António disse:
- Se o senhor Vicente quiser, cavo-lhe esta terra a trato.
– Olha que cinco homens cavam esta terra num dia. Podes levar sete ou oito que só te pago cinco, entendeste?
Entendeu e aceitou. E esfalfou-se de crepúsculo a crepúsculo, com a velha raiva sempre no fio do sacho, como se a cada cavadela pudesse atingir a alma do senhor Vicente. Quatro dias bastaram para fazer o serviço que era feito por cinco homens num dia. Na hora de pagar, o senhor Vicente mediu alqueire e meio de milho.
– E as outras seis maquias?
O senhor Vicente, em tom de justiça definitiva, bem lembrado de que aquele era serviço de cinco homens num dia, respondeu:
– Pensas que eu sou tolo ou quê? Não foi só quatro dias que trabalhaste? Aí tens.
António não encontrou modo de dizer a sua revolta, o seu desprezo. E foi o senhor Vicente que lhe despejou em cima:
– O que essa canalha me tem roubado! Um fedelho como tu cava-me a terra em quatro dias, e andavam para aí sempre cinco malandros a fazer ronha para aguentarem até às trindades!
António sentiu vontade de o esganar. Ainda disse, a medo:
– Mas o trato não era de me pagar como se fosse cinco dias?
– Isso era se levasses mais tempo a cavar. Ou querias ganhar cinco dias em quatro? Ou amanhã ganhavas o dia sem trabalhar porque eu já tinha pago adiantado?
António foi-se embora sem ter dito mais nada porque tinha as esponjas das lágrimas quase a rebentar-lhe nos olhos.