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Sete Vidas Como os gatos

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Sete Vidas Como os gatos

09
Mai08

O processo dos McCann

Rui Vasco Neto

Os senhores farão o favor de não ligar, pode ser? Passo a explicar, de qualquer maneira. Estava eu para aqui a limpar rascunhos já publicados quando, com a habilidade que me é natural para estas coisas e a pontaria que me vai tornando mítico ou quase, apaguei o próprio post, o texto inteirinho e de forma irreversível, como fez questão de me avisar a máquina, numa derradeira oportunidade que aqui o génio ignorou, claro. Sim, é por demais evidente que sou uma besta neste assunto, mas isso agora também não interessa nada e não adianta bater mais no ceguinho, ok? Por isso, tal como já disse logo na entrada, os senhores farão o favor de não ligar, pode ser? Por questões de arquivo, para memória futura da produção publicada, reproduzo aqui e agora, mesmo fora de tempo, o texto do post do passado domingo, dia 4 de Maio. E não se torna a falar no assunto, está combinado? Faz de conta que não aconteceu, sei lá, que nada se passou. Nem um pio, a partir de agora, vamos: um, dois e ... três.

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Leio no SOL. O Ministério Público e a Polícia Judiciária vão ter uma reunião decisiva para o futuro do caso do desaparecimento de Madeleine McCann, dentro de duas semanas. Segundo o jornal, os responsáveis pela investigação vão avaliar, nesse encontro, a possibilidade de deixar cair a acusação de homicídio contra os pais de Maddie, avançando apenas com um processo de negligência. Com a acusação ainda em aberto, o MP irá pedir o prolongamento do segredo de Justiça até Agosto, garante ainda aquele semanário. Eu cá fico a pensar nos cenários possíveis e no que eles me dizem dos possíveis propósitos da Justiça. Ou melhor assim, talvez:  em que cenário e em que medida servirá que propósito o quê, na óptica da Justiça? Um tanto rebuscada, aparentemente, a elaboração deste raciocínio, mas vai dar ao mesmo sítio onde outros já se esgotaram e caíram de quatro, neste beco dos trouxas onde nada faz sentido, nada bate certo com coisa nenhuma: a investigação do famoso 'caso Maddie McCann'.  

 

Onde está a Maddie? Quem levou Maddie? E foi levada ou talvez não? E o que fizeram à Maddie, está  viva ou talvez não? E quem matou a Maddie, que está morta ou talvez não? E os pais da Maddie, esses malandros, são malandros ou talvez não? Há respostas para todos os gostos, em cada português, para cada uma destas perguntas.

Poucos casos se terão intoxicado tanto de opinião pública intoxicada como este. Todas as versões do desaparecimento de Maddie estão irremediavelmente arredadas de qualquer conceito de rigor, o mesmo rigor que vem escapando à esmagadora maioria dos comentadores acreditados do caso Maddie, incluindo os oficiais. Em quem só acredita, perdoarão a franqueza, quem também acredita em qualquer merda que lhe digam, mesmo quando publicada em alguns jornais que já tinham tiragem para ter juizo, convenhamos.

Assim, da boca de ilustres figurões da nossa praça, rapazes com lugar cativo e estatuto de destaque no speaker's corner cá do burgo, saíram as sentenças mais pesadas para o casal McCann; ele por ter uma cara assim e ela porque se vê logo que é culpada, nem uma lágrima chorou. Assunto encerrado. E isto para não falar nos especialistas em crime e criminosos, como o Dr.Moita Flores, por exemplo, que já provou mil e treze vezes, por A mais B menos C, na Fátima Lopes, no Correio da Manhã, na Caras e na Maria, que Kate e Gerry eram os culpados mais culpados de todos os culpados que um dia foram culpados de alguma coisa, em toda a história desta culpada Humanidade.  


Agora, um ano passado sobre o desaparecimento de Maddie e com as autoridades tão perto de descobrir o que lhe aconteceu como Luis Filipe Menezes está perto de chegar a primeiro ministro, depois das inúmeras rajadas disparadas nos próprios pés, a justiça portuguesa vem agora dizer que pondera a hipótese de deixar cair a acusação de homicídio contra os pais de Maddie, avançando apenas com um processo por negligência. Que é este o ponto em que estão as investigações. E que é isto o que o que a justiça portuguesa tem a dizer neste momento. Eu pergunto para quê e porquê, não quero ser chato, só quero perceber. Qual é a ideia, afinal? Qual é o sentido de um processo-crime sobre os McCann nesta altura, por negligência, quando interposto por um Estado não inocente ele próprio de alguma negligência, grave, ao longo da sua actuação no mesmo caso McCann? Que já disse e repetiu uma coisa e o contrário dessa coisa, por várias vezes, a propósito e a despropósito, dizendo e desdizendo-se a seguir, ora por um, ora por outro alto responsável, ora político, ora polícia. Os mesmos que agora querem julgar os McCann por terem sido negligentes no cuidado com a filha que perderam, da mesma forma que já quiseram julgá-los por homicídio com ocultação de cadáver. Só que houve 'alguma precipitação por parte das autoridades', veio dizer o director geral da PJ ao país, numa entrevista de televisão que o país ouviu e não calou, desta vez, autorizado pelo desnorte geral. E agora toda a gente tem uma opinião, toda a gente tem uma teoria, uma cusquice ou um palpite seguro sobre o caso McCann. Sobre a miúda? Não, disparate. Sobre a culpa dos pais, evidentemente.

A culpa ou inocência dos McCann é prato do dia em qualquer cafézinho de bairro, é conversa com a freguesa enquanto se amanha o peixe, bengala do cauteleiro, do engraxa, do merceeiro e do taxista, para haver assunto e distracção. E este é o assunto perfeito, há tão pouco contraditório que se fazem amigos num ápice, tal é a convergência de opiniões. Se é facto que poucos gostarão de Gerry, já pouquíssimos serão os que não prendiam Kate e deitavam fora a chave, pelo sim pelo não, se tivessem oportunidade para tanto.

A opinião do povo está feita, já foi dada a sentença da opinião pública, curiosamente num processo semelhante ao que ocorreu no próprio Reino Unido, onde imprensa e opinião pública, num ciclo de galinha e ovo, já apodaram os McCann de bestiais a bestas várias vezes e, tal como cá, ao ritmo das fugas cirúrgicas de informação oficial. E, tal como cá, ninguém tem certezas absolutas sobre coisa nenhuma deste caso. A não ser que Maddie McCann desapareceu há um ano, exactamente, e ninguém faz a mais pequena ideia do que lhe aconteceu, onde está neste momento, ou sequer se vive ainda. E se nada de novo se sabe de Maddie, quem sobra para fazer a notícia deste grande tema da actualidade? Os pais, claro. Gerry e Kate McCann, os ingleses que deixaram a filha a dormir no quarto e foram jantar com os amigos para o restaurante. Os culpados mais apetecidos de todos, com ou sem culpa real, pormenor de somenos na circunstância. Para mais de meio Portugal está decidido: eles têm cara de culpados, ar de culpados, história de culpados, são os culpados perfeitos e será uma pena se não forem mesmo eles os culpados.    

 

Só uma de duas coisas pode ser a verdade, no que toca a Gerry e Kate McCann. Uma: eles sabem o que aconteceu à filha, sempre souberam, o tempo todo. Essa é uma hipótese. Se sabem o que aconteceu, então são culpados, independentemente do que em concreto possam ter feito, se mataram, se foi acidente e apenas ocultaram o corpo, seja o que for: se sabem, são culpados de enganar o mundo inteiro. Ora, condená-los em Portugal por negligência, neste contexto, seria uma piada de mau gosto pelo que implicava de assunção da impotência e fragilidade da Justiça portuguesa perante uma monstruosidade desta envergadura. Imaginemos uma sentença, qualquer sentença; falamos de quê, exactamente, de que moldura penal, que expectativa de sentença, que tipo de pena, efectiva, suspensa? E recursos, quantos? Na prática, que castigo aconteceria? E justiça, fazia-se? Há que reconhecer que não mostra ser grande solução, este processo por negligência, nem mesmo na hipótese dos MsCann serem culpados de facto.

Mas ponhamos agora por um momento a segunda hipótese, já agora. Aceitemos a possibilidade, ainda que remota para alguns, de Kate e Gerry terem estado a dizer a verdade o tempo todo, de tudo ter acontecido como eles dizem que aconteceu (versão que os factos apurados pelos investigadores da PJ nunca desmentiram) e destes pais estarem mesmo sem saber onde está a sua filha hà exactamente um ano, ou o que lhe aconteceu nestes doze meses, ou ainda onde passou estes trezentos e sessenta e cinco dias, todos com vinte e quatro horas de angústia cada um. A ser um facto a inocência de Gerry e Kate, então a realidade dos McCann, o inferno por que têm passado e o drama que sobre eles se abateu em Portugal é um pesadelo inimaginável para qualquer um de nós. Um verdadeiro massacre, até aqui; e um estigma cruel para as suas vidas futuras. Um duro golpe do destino. Nesse contexto, depois de terem sido roubados do seu bem mais precioso, acusados e quase presos pelo homicídio da filha, condenados pela opinião pública de um povo que lhes não aceita a diferença cultural que torna incompreensíveis os seus motivos e razões no desaparecimento de Maddie, depois de tudo isto e mais um ano de angústia pela ausência da filha, processá-los agora por negligência seria uma crueldade escusada, grosseira e revoltante. Já como manobra processual, nem no âmbito de uma qualquer estratégia eu lhe vislumbro qualquer sentido, mas enfim, eu sou apenas mais um ignorante, fácil de iludir. Mas tem um lado pior, bastante pior: não lhe vejo qualquer propósito de Justiça, rigorosamente nenhum. E isso sim, parece-me o mais grave de tudo.

 

Definitivamente, esta intenção anunciada da Polícia Judiciária e do Ministério Público de ponderarem a hipótese de deixar cair a acusação de homicídio contra os pais de Maddie, avançando apenas com um processo por negligência, parece-me mais um daqueles tiraços que a malta é perita em dar no próprio pé. Se considerarmos a questão apenas do ponto de vista legal, em termos de ser ou não ser feita justiça, a verdade é que pouco importa se o processo vai evoluir assim ou assado, se vai mostrar isto ou aquilo; e seguramente menos ainda importa o eventual desfecho de uma tal pantomina da Justiça. Que neste 'caso Maddie' mais parece ser cega, sim, mas só de um olho.

 

publicado por Rui Vasco Neto
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