A aventura dos portubaixeses sem acordo no país do dito
O Presidente da República Portuguesa fez ontem saber que tinha já promulgado o Acordo Ortográfico, ratificado pelo parlamento em Maio passado. Pois nem mesmo assim os ciganos da Quinta da Fonte regressaram ao Bairro da Apelação. A notícia da promulgação presidencial deste novo Acordo em nada os abalou e muito menos os fez abalar do jardim onde acamparam desde o início da grande guerra. O que até se compreende, tem a sua lógica, há que reconhecer.
Afinal, este Acordo não mudou nada na situação desta gente, deste bairro, deste país de conflito e miséria que existe por detrás das praias algarvias, dos arraiais minhotos, das novelas da TVI, do Bom Jesus de Braga, do novo plantel do Benfica, do Santuário de Fátima e do Acordo Ortográfico. É Portugal-de-Baixo, um fundo de país com capital na Apelação, um bairro do circuito 'Vá para baixo cá dentro' que espelha um país com outras questões a exigirem outro tipo de acordos que não este, que nada muda ou resolve na vida dos portubaixeses. Mas seja, em tempo de Acordo vamos às palavras, descobrir as diferenças.
Vejamos, por exemplo, as palavras 'ódio', 'ciganos', 'racismo', 'revolta', 'pretos', 'segregação', 'vandalismo', até mesmo 'segurança'; elas não sofrem quaisquer alterações no novo léxico da nação. E 'guetto' nem sequer é palavra portuguesa, pelo que ninguém que seja alguém na política (governo ou oposição) alguma vez sequer a admitirá na conversa, seja qual for a conversa e se houver conversa (o que nã se vê jêtos, como se diria num Acordo Bejense). E há mais: o 'esgoto' mantém-se tal como estava, o 'medo' fica o de sempre e nos 'tiros' também ninguém mexeu. Só a 'decepção' é que é diferente desta vez, mas não muito: caiu o pê, apenas, acontece muito neste tipo de problemas, foge para o chinelo, por regra. E a reacção também terá ficado menor, talvez menos vitaminada sem o C. De resto, não muda a 'merda' nem mudam as 'moscas'. E na Quinta da Fonte também não vai ser um acordo ortográfico a trazer a mudança para o dia-a-dia de sempre. E assim, sem desacordo que se lhes conheça quanto ao Acordo mas na ausência de um acordo que lhes garanta a quantidade de impossível necessária para uma solução que satisfaça toda a gente, (os uns, os outros e o país inteiro que segue a novela), os ciganos não voltaram ontem para o bairro. E dizem que não voltam hoje, nem nunca mais. Que não há acordo possível. Eu julgo perceber do que falam, para lá de concordar ou discordar do que dizem. Quero entender, sobretudo. E antes de tudo.
Os moradores dos bairros que fazem este país de misérias tantas e tão tristes Apelações, constituem a massa humana de que é feita esta estrutura social distorcida, viciada de geração em geração, culturalmente viciosa e amontoada por grosso em favos distribuídos 'às famílias' num sorteio de colmeias e colmeias de semi-gente, arrumada assim em vidas novas juntinhas para poupar espaço e em troca das vidas velhas em barracas condenadas que estavam a empatar o progresso. São bairros que acabam por ser autênticas extensões dos estabelecimentos prisionais, na prática (ou vice-versa, pouco importa), que o Portugal porreiropá conscientemente aceita e cuja existência consente, pese embora o nojo que o leva a olhá-los o menos possível, sempre sem os ver, por pudor só ausente em campanhas eleitorais. Mas não sem condições implícitas, subentendidas e conhecidas por toda a gente, a saber: não dar demasiado nas vistas, não envergonhar a malta em frente às visitas, não estragar o retrato de família, cá dentro ou lá fora, e sobretudo não chatear quem manda, nunca. É como quem diz 'low profile', na terminologia do poder. É como quem diz 'não fazer merda', numa linguagem de policiamento de proximidade, repetidamente explicada aos portubaixeses e muitas vezes por palavras.
É neste equilíbrio delicado que co-existem fogo e estopa, anos e anos e vidas a fio, porta com porta em meios-metros de rua e paredes-meias de casa, num milagre diário imposto pela maior das necessidades: a sobrevivência. Pois bem, está visto que no Bairro da Apelação o milagre apagou-se, por estes dias, entre os portubaixeses. Portugal segue o drama por alto, como um jogo da 2ª Divisão-B e em zapping com as novelas da noite, que a coisa promete. As forças de segurança estão no local, o aparato é beirutiano, Portugal-de-Baixo é zona de guerra. Esquecidos da sobrevivência e turvos de raiva, fogo e estopa pegaram-se no esgoto e atearam o incêndio mais preocupante deste Verão. São velhos ódios, ressequidos de gerações e misturados com toda a espécie de pressões e frustrações de uma existência madrasta, mais os velhos truques das negociatas sujas e escondidas, tudo tão somente à mercê de um sopro de preconceito que lhes dê de feição e alastre a tragédia ao impensável. E depois de tanto ver e ouvir o senhor Ministro Rui Pereira a dizer coisas sobre firmeza e sobre dead lines que não só não morrem como estão sempre a nascer, pergunto a mim próprio se estará alguém com atenção aos ventos lá em baixo ou se está tudo distraído a bater palmas uns aos outros cá em cima.