Pelas cinzas de uma bandeira
Daniel de Sá continua a sua visita ao passado, guiada por fantasmas. E diz-me, em recado privado: «Parece kafkiano, mas é a impura da verdade. Não me atrevo a dizer que a bandeira terá sido lá posta de propósito para provocar algo do género, mas é possível que sim. Levei anos a perceber que não faltava gente que queria "queimar-me". Nunca me julguei personalidade que se destacasse o suficiente para merecer tal empenho. Mas, para que a memória não se esqueça, aqui fica a verdade dos factos, e com os nomes de alguns protagonistas, que podem confirmá-los.» Despede-se com um abraço que eu logo retribuo, cá dentro. E segue a história, esta com que vos deixo, sem mais comentários.
Em baixo: "Pelas cinzas de uma bandeira"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá
A história da bandeira da FLA que foi queimada na Maia poderia servir de exemplo de quanto um mau informador pode transformar em mau um bom jornalista. Pois então se se juntam os dois, mau informador e mau jornalista, o caso chega a ser catastrófico.
Para se perceber melhor a diferença entre a realidade e o que foi relatado no jornal “Açores”, vou assinalar com letras partes da história verdadeira e, com a mesma letra, a sua correspondente na notícia do jornal.
No início do Outono de 1975, ia eu a caminho da escola, mesmo ao lado da minha casa, quando dei com o Francisco “Carolo”, moleiro e figura ímpar dos tempos que se seguiram à Revolução, esbravejando como se tivesse viste o Diabo. Disse-me, muito exaltado: “Aquela bandeira é para queimar!” Eu não sabia da existência de nenhuma bandeira, mas, pelos seus modos, deduzi facilmente que só poderia ser a da FLA. Tentando acalmá-lo, respondi apenas que não se queimava bandeira nenhuma, que ela não fazia mal a ninguém. Ao chegar à rua de Santa Catarina, vi então uma bandeira da FLA hasteada num edifício não habitado, mesmo em frente da igreja, e que é agora sede da esquadra da PSP. A bandeira fora trazida de Ponta Delgada por um simpatizante da FLA (Virgínio de Oliveira), que pediu a três rapazes, todos à volta dos vinte anos, para a irem hastear ali, o que eles fizeram já muito depois da meia-noite. Só anos mais tarde é que um deles, que é meu afilhado, se atreveu a confirmar este pormenor, de que cedo se desconfiou. Eram eles o João Carlos de Braga Carreiro (o que é meu afilhado e dono do Bar “O Convívo” onde o Gastão do Rui se encontrou com o Gastão pessoa), o João Carlos Carreiro Farias (empreiteiro de construção civil) e o José Adriano Faria, emigrado há muitos anos.
Na véspera, o Jaime Gama e o Francisco Macedo (dirigente regional do PS) tinham estado em casa do Francisco Sousa, comigo também, a preparar as eleições autárquicas (a). Pelas sete horas da noite seguiram para a Achada (do Nordeste) com idêntica missão. No dia seguinte, o António Maurício Tavares de Sousa (actual membro do Conselho da Administração da SATA) e o Carlos de Almeida Branco, ambos estudantes de economia, voltavam para Lisboa, e decidiram fazer um convívio de despedida em minha casa. Juntou-se um grande número de amigos e amigas, que incluía gente de todo o espectro partidário (na Maia nunca houve separação de pessoas por ideais, e a mesma escada chegou a servir, ao mesmo tempo, para pregar cartazes do PPD, do PS e do PC, embora cada qual se encarregasse dos seus.) Havia até um amigo do CDS que a gente sabia ser simpatizante da FLA. A ceia consistiu em caracóis guisados e chouriço à bombeiro (b).
O horário da camioneta da carreira, cujo condutor era o meu sogro, mudara uns meses antes para meia hora mais cedo, pelo que passou a chegar a um quarto para as seis, horário que ainda se mantém. Foi para esta hora de chegada que a queima foi programada(c).
Enquanto alguém preparava a queima da bandeira, eu dormia uma sesta à alentejana. Quando me levantei, fui ver o que se passava. A bandeira ainda estava hasteada. Havia cerca de umas quatro centenas de pessoas no adro, mas não houve qualquer desacato nem gritos de viva ou morra. Quem chamara gente para assistir fora um cunhado meu, Roberto Rodrigues, que também preveniu a RTP do que ia acontecer, e que é hoje um dos mais respeitados advogados do Seixal, além de ser professor. Outro, que também trouxe a lenha na burrinha que o pai usava para se transportar ou trazer pequenas cargas, é médico e professor na Universidade de Coimbra. (Um génio que, em sete anos e meio de estudo, passou da 4ª classe a licenciado em Medicina.)
Quando um rapaz subiu a parede da casa para arrear a bandeira, eu aproximei-me do pequeno grupo que lá estava e disse que não a queimassem. (Para mim, queimar uma bandeira é o símbolo do ódio justo ao nazismo, pelo que nenhuma outra merece tal.) Eu sugeri que se podia pisar a bandeira, arrastá-la pelo chão e atirá-la à lixeira, mas que se a não queimasse (d). Perto, ouvindo o que dizíamos, estava um senhor que sempre teve muita dificuldade de se expressar com clareza. Foi ele que no dia seguinte (costumava dar umas notícias da freguesia) foi ao jornal “Açores” relatar os acontecimentos, mas, no seu modo atabalhoado, terá tido dificuldade em fazer-se compreender. E ao jornal convinha acreditar no que parecia mais do que no que era. Apesar do que eu sugeri, a bandeira foi queimada de imediato.
A notícia do jornal saiu dizendo que:
O Francisco Sousa e eu é que tínhamos organizado o espectáculo. Com a presença de dois altos dignitários do PS(a), a queima da bandeira foi combinada durante um “lauto banquete” (sic) em minha casa(b). Que nós (e outros do PS) é que tínhamos posto a bandeira ali, para a queimarmos depois. Que o autocarro da carreira chegou meia hora mais cedo (a viagem de Ribeira Grande à Maia demorava cerca de 40 minutos!) para assistir à queima (c). Que a bandeira foi arrastada, atirada para a lixeira e depois queimada(d).