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Sete Vidas Como os gatos

20
Ago08

A menina amarga (I)

Rui Vasco Neto

Diz-me o meu amigo Daniel de Sá, juntando-se às comemorações oficiais do primeiro aniversário do 'Cantigueiro': «O Samuel fez um "post" belíssimo a propósito do aniversário da vergonhosa morte de Lorca, em 19 de Agosto de 1936. Eu pus um poemeto meu na sua caixa de comentários, poemeto esse que consta de um conto que te envio. Creio ser demasiado longo para sair inteiro. A não ser que o partas por dois ou três dias. Neste caso, dedica-o ao Samuel.» E pronto, o meu amigo falou. Os seus desejos são ordens e a causa é justa, nada a dizer. Segue a primeira parte da história, sem mais conversa. Amanhã sai a segunda e última.

 

Em baixo: "A menina amarga"

Sete vidas mais uma: Daniel de Sá

 

No dia quinze desse mês de Julho de 1936, Afonso Manuel havia mandado de Granada uma crónica para o “Diário de Notícias” que começava assim:

 

O ar em Espanha cheira a morte. A República falhou o seu ideal de humanidade, e não há diferença entre egoísmo e tolerância porque já não existe tolerância. Os pobres acumularam em ódio as injustiças, os senhores não deixam que ninguém ocupe o lugar que julgam seu. De um lado e outro as palavras perderam a força, os ideais sucumbiram à violência dos actos. A nação está fatalmente dividida em dois campos, separados às vezes apenas pelo espaço de uma rua, pela largura de uma mesa na sala de jantar. 

 

“Não está seguro o ministro no gabinete, o camponês na fazenda, o proprietário na quinta, o padre na igreja, nem sequer Deus no Seu altar.

 

Era assim o primeiro parágrafo da crónica do dia vinte e dois:

 

Faço o possível para pensar que não foi declarada uma guerra fratricida, tento convencer-me de que tudo será breve, apenas uma revolta geral que decerto unirá Espanha, pelo menos a maior parte de Espanha, ao levantamento militar de há cinco dias." Depois de resumir a catástrofe fulminante que ia sucedendo aos crimes dos últimos meses, citou García Lorca: “A Espanha é o único país do mundo onde a morte é um espectáculo nacional”, acrescentando que, no entanto, o poeta ao escrever esta frase deveria ter pensado mais no seu amigo Ignacio Sánchez Mejías do que num povo que iria reclamar muitas mortes, todas as mortes possíveis, não de toiros mas de pessoas. E concluiria com excertos do “Grito hacia Roma”, um poema de Nova Iorque que só seria publicado em livro depois da morte de García Lorca: “Porque já não há quem reparta o pão e o vinho,/ nem quem cultive as ervas na boca do morto,// Há apenas um milhão de carpinteiros/ que fazem ataúdes sem cruz./ Há apenas uma onda de lamentos/ que abrem a roupa à espera de uma bala.” Parecia uma premonição da guerra e do seu próprio fim...

 

Afonso Manuel não via Federico García Lorca desde que ele fora para Madrid. Soube que voltara a Granada no dia em que se dera a rebelião, e só em Agosto lhe disseram que o poeta procurara refúgio em casa de Luís Rosales, um amigo falangista que lhe serviria de protecção contra qualquer possível loucura dos amotinados. No dia dezoito desse mês, anotou na sua crónica: “Em ninguém se pode confiar. Acabo de ser informado de que García Lorca foi levado para o Governo Civil, decerto para estar mais protegido, porque a vida, por estas ruas e praças, e até dentro da casa de cada um, vale agora muito menos do que a morte, que é a moeda mais corrente em Espanha e com a qual se pagam todas as dívidas.” Os guardas que tinham ido buscá-lo haviam comido familiarmente em sua casa bolachas e bebido chá enquanto esperaram que se vestisse, o que parecia uma prova de que as suas intenções eram boas.

 

No dia seguinte, estava a ler o poema “Romance sonâmbulo”, quando Pablo, fazendo um grande esforço para disfarçar a perturbação, chegou junto dele e disse: “Está lendo poemas de Don Federico...” Fez que sim com a cabeça. (“O largo vento deixava/ na boca um estranho gosto/ de mel, de menta e de alfavaca. / Compadre! Onde está, diz-me?/ Onde está a tua menina amarga?”) Pablo trabalhava para García Lorca na sua quinta do Tamarit, e chamara ao filho Juan porque sabia que o patrão gostava deste nome. Foi no momento em que dentro da cabeça lhe soavam as palavras “¿Dónde está tu niña amarga?” que Pablo deu a notícia: “Mataram-no.” Esperando ouvir o nome de mais um político importante, perguntou: “Quem?” Pablo amarrotou as orelhas entre as mãos, e respondeu: “Don Federico.”

 

“Malditos!” Disse-o cinco vezes. E pôs-se a chorar. Pablo chorava também. “Quem foi o monstro que o matou?” Pablo não sabia um nome, mas tinha sido alguém do lado dos revoltosos. “Definitivamente, em Espanha são os cemitérios o único lugar seguro. Os dois lados são iguais, Pablo. Mataram García Lorca, decapitaram Espanha.”

 

Para Pablo, talvez fosse mais importante a perda do patrão, do amigo e do guitarrista do que do poeta que não conseguia entender tão facilmente como entendia os seus próprios sentimentos e o som da guitarra que, afinal, não iria a enterrar consigo. Depois de uns demorados momentos de dor e raiva, começou a cantar baixinho: “¡Qué bonito está mi niño!/ Ángel durmiendo en la cuna/ con su sábana de piel/ que es del color de la luna.”  Explicou: “Don Federico cantou isto quando viu Juan dormindo nu, na quinta, no verão passado.”

(amanhã: 'A menina amarga', parte II )

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