A menina amarga (II)
Para anteceder a publicação da segunda e última parte deste conto envia-me o meu amigo Daniel de Sá uma nota prévia: «O essencial histórico deste conto é real, incluindo a arrepiante cena dos guardas a comerem bolachas e beberem chá, oferecidos pelas irmãs de Federico, enquanto este se vestia para a morte. Afonso Manuel e Pablo são personagens inventadas. A Quinta de Tamarit (ou Huerta de San Vicente) existe ainda, e é local de peregrinação dos amantes do poeta. Lorca gostava de facto do nome Juan, mas eu cometi o pecado de me atrever a atribuir-lhe a quadra cantada ao filho de Pablo, que, em Português, deverá ler-se assim: “Que bonito está o meu menino!/ Anjo dormindo no berço/ com o seu lençol de pele/ que é da cor da Lua.”» Vamos então ao resto da história, já que foi exactamente quando Pablo cantava essa quadra que ela ontem se acabou.
Em baixo: "A menina amarga (II)"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá
Afonso Manuel escreveu na crónica sobre a morte de García Lorca:
“O assassínio absurdo de García Lorca não foi igual a nenhum dos outros que de ambos os lados já se cometeram neste mês de guerra. Quem o matou não roubou trinta ou quarenta anos de existência, que era o que se poderia esperar como normal num homem da sua idade, mas milhares de versos, milhares de palavras cheias do mais puro sentimento da vida.
“Não há lei que nos proteja da guerra. Mas devia haver uma ordem universal que proibisse matar os poetas como García Lorca, que não são propriedade de uma nação mas de toda a humanidade. Quando Espanha se der conta do que fez, levará séculos a chorar a perda que infligiu a si mesma e a todos nós.
“Afinal de contas, não há libertadores, mas loucos violentos que pagam crimes com outros crimes. E, se o talento de um génio como o de García Lorca não merece mais respeito do que a morte à beira do caminho que vai de Granada para Guadix, nada posso esperar para mim. Queimei todos os meus poemas quando cheguei a casa, sem que Mercedes soubesse o que eu fazia. Foi a única homenagem possível a Federico.”
A crónica mereceu a censura de Guilherme Sampaio que, no final de uma resposta àquela publicada no Diário e Notícias, três dias depois disse: “Ao queimar os seus poemas, o senhor Afonso Manuel prestou certamente um bom serviço à cultura portuguesa. Se deixar de escrever estas suas crónicas, prestará sem dúvida um bom serviço à civilização cristã ocidental.”
Afonso Manuel haveria de se defender, num simples post scriptum à crónica seguinte. “Com certeza vou menos vezes à missa e à comunhão do que o senhor Guilherme Sampaio, o que não me torna, no entanto, menos ocidental nem menos cristão do que ele. Talvez, isso sim, me tenha feito cometer menos sacrilégios.”
O jornal recebeu uma comunicação do governo a proibir as crónicas de Afonso Manuel, mas ressalvando o caso, para ficar sem efeito a proibição, de ele passar a defender “a missão civilizadora e cristã do levantamento militar, como pareceu ser sua intenção nas crónicas que antecederam as lamentáveis considerações a respeito da morte de Garcia Lorca, que ninguém sabe ao certo em que circunstâncias aconteceu”.
O director do liceu de Granada onde Afonso Manuel era professor chamou-o, e repreendeu-o severamente por causa do modo como estava a dar uma visão tristemente errada do conflito, disse, que poderia ter más consequências para os nacionalistas e trágicas para ele mesmo, que só teria sido poupado à prisão por se tratar de um estrangeiro, cidadão de um país amigo. Estava posta de parte, no entanto, a hipótese de poder continuar no seu cargo docente, o que era pena, lamentou, pois sempre tinha sido muito querido por todos. Talvez não apenas como mera coincidência com o governo português, a decisão seria alterada se ele deixasse de emitir opiniões que comprometiam os interesses de Espanha, porquanto até se compreendia, embora dificilmente se aceitasse, a sua reacção emocionada à morte de García Lorca, de quem o sabiam amigo. Mas teria de rectificar, em próxima crónica, a informação de que o poeta fora assassinado a mando do governo civil, que era uma calúnia infame, afirmou.
Afonso Manuel compreendeu que o seu futuro estava definitivamente em perigo, e não seria capaz de comprar a sua segurança traindo-se a si mesmo e à verdade. O pior era ter de arrastar Mercedes e os filhos na fuga à morte que imaginava ser o seu destino a partir desse momento. Acabou por se refugiar em Valência, mais a mulher e os três filhos. Aí chegou a conhecer Antonio Machado, que passou algum tempo em Rocafort próximo das casas onde esteve alojado o governo republicano. No fim da guerra fugiu para França, vivendo o suficiente para assistir à queda dos dois regimes que lhe haviam mudado o destino tão brutalmente.
Fora para Granada por se ter casado com Mercedes, natural dessa cidade, uma estudante que conhecera em Salamanca, onde se licenciara em História. Para ele, que era de Miranda do Douro, pouca diferença teria feito viver longe de casa em Coimbra ou em Espanha, pelo que preferiu a pequena aventura de ingressar na universidade de Miguel de Unamuno, uma figura que o fascinava, apesar de saber que não poderia ser aluno do sábio reitor.
O assassinato de García Lorca não matou um poeta somente. O suicídio poético de Afonso Manuel foi uma sua consequência directa, e talvez o próprio Unamuno tenha mais cedo desistido de viver por causa dos desgostos da guerra, do qual este foi sem dúvida um dos maiores. O filósofo basco também começara por apoiar o levantamento militar, mas cedo compreendeu o atoleiro de ódios em que caíra Espanha, o que lhe valeu ser vigiado pela guarda civil até à hora da morte, no último dia desse mesmo ano.
Depois de ter queimado os seus poemas, Afonso Manuel ainda escreveu um derradeiro, em homenagem a García Lorca, que veio disfarçadamente no final da crónica em que contava o crime. Muitos leitores não se terão apercebido sequer de que se tratava de facto de um poema, escrito como se fosse simples prosa, embora emocionada. Há nele uma evidente influência do poema de Lorca “A monja cigana”, sobretudo nos primeiros oito versos e na referência às cinco chagas de Cristo e à missa.
Eis o texto em Português: “Silêncio de medo e morte. Sangue nas fundas feridas. A espingarda bordando a vermelho sobre uma tela de pele. No ar voam nuvens de fumo cheirando a morte. Um último trovão surdo chega calado a Granada. O monte procura planícies porque quer ajoelhar-se. Federico adormeceu entre Alfacar e Viznar, numa ravina de oliveiras. A sua pele, lençol de morto ou tela de bordadeira, que era de uma só peça como túnica de Cristo, agora tem buracos. Tem cinco feridas. Cinco, muito fundas, até à sua alma, abertas pela espingarda. Tem cinco chagas. Cinco, como as chagas de Cristo. Federico dorme agora nessas bodas de sangue. Cálice de morte e missa.”
Note-se a semelhança do ritmo e das ideias com o início do poema referido: “Silencio de cal y mirto./ Malvas en hierbas finas./ La monja borda alhelíes/ sobre una tela pajiza./ Vuelan en la araña gris /siete pájaros del prisma.” Veja-se ainda a coincidência de “Um último trovão surdo” com “Un rumor último y sordo”, bem como a alusão à pele como lençol (da canção que Pablo disse que García Lorca tinha cantado ao filho, e que Afonso Manuel referiu na crónica), e finalmente a quase transposição de dois versos dedicados ao arcanjo S. Gabriel, protector de Granada (“La noche busca llanuras/ porque quiere arrodillarse): “O monte procura planícies porque quer ajoelhar-se.”
Em Castelhano, o poema tinha a seguinte forma e pontuação:
Silencio de miedo y muerte.
Sangre en las hondas heridas.
Un fusil bordando a rojo
Sobre una tela de piel.
En el aire vuelan nubes
Del humo oliendo a la muerte.
Un último trueno sordo
Llega callado a Granada.
El monte busca llanuras
Porque quiere arrodillarse.
Federico se ha dormido
En un barranco de olivos
Entre Alfacar y Viznar.
Su piel, sábana de muerto
O tela de bordadora,
Que era de una sola pieza
Como túnica de Cristo,
Ahora tiene agujeros.
Tiene cinco heridas cinco,
Muy hondas, hasta su alma,
Abiertas por el fusil.
Tiene cinco llagas cinco
Como las llagas de Cristo.
Federico duerme ahora
En esas bodas de sangre.
Vaso de muerte y de misa.