O meu Brasil brasileiro
O meu Brasil brasileiro tinha as cores da ditadura ainda frescas de velhas nas paredes para me receber. Chego na posse de Tancredo Neves, vive-se o que parecia impossível pouco antes, ainda, com Figueiredo: o verde-amarelo ao rubro. E ainda mal me equilibrei na voragem de todo aquele imenso entusiasmo e confiança e já vou no mergulho nacional na dor e angústia pela doença súbita e fatal do Presidente eleito. Era a democracia que parecia agonizar, naqueles dias terríveis em que o Brasil inteiro fazia pouco mais do que rezar por Tancredo. Que se foi, ficando herói e sendo substituído por Sarney, assim colocado de empurrão pelo destino ao leme da mudança imparável deste Brasil anos 80.
O meu Brasil brasileiro um dia acordou fechado, tudo fechado, lojas, mercados, bancos, tudo. Era o Plano Cruzado, que do dia para a noite congelou todo o dinheiro em circulação e matou o cruzeiro com o primeiro dos vários tiros de misericórdia que acabariam por conduzir ao actual real. E o país reagiu como um todo, absorveu e adaptou-se, com o seu tradicional jeitinho, e tudo acabou em samba como sempre. Era o tempo de Brizola na cabeça, slogan do governador. Em S.Paulo era já Maluf que despontava mas ainda Jânio Quadros quem pendurava as botas na parede do seu gabinete e governava o Estado. O deputado federal Juruna, ícone de honestidade da revolta índia pelos seus direitos, aparecia na televisão nacional filmado no interior de um Banco, de casaco e gravata e saiote tribal, envolvido numa cena de pancadaria de criar bicho por acusações de corrupção. Joãozinho Trinta era o grande carnavalesco na Beija-Flor, Clóvis Burnay brilhava nos desfiles de salão e na Portela mandava um português, Carlinhos Maracanã, presidente do Bangu FC e assumido patrão do Jogo do Bicho. Eurico Miranda sobressaía no grupo Monteiro Aranha e ainda sonhava ser presidente do Vasco da Gama, era António Calçada quem mandava, ao tempo. O bandido da moda, o inimigo público número um, era um tal de Escadinha, um líder de favela famoso por ter fugido da ilha onde estava preso, de helicóptero, enquanto os guardas pensavam que ele estava numa visita íntima autorizada com a sua namorada. Tinha vinte e poucos anos nessa altura, poucos mais viveu até morrer baleado, como muitos outros bandidos depois dele até hoje e até amanhã e depois de amanhã, seguramente. E o Brasil vai levando, penando e rindo à toa da vida, entre cana e futebol, fome e carnaval, plumas e paetês. E muito samba no pé.
O meu Brasil brasileiro aprendia com Cazuza a palavra AIDS, para não mais a poder esquecer. Na televisão brilhavam Chacrinha, Cid Moreira, Gugu, Jô, Faustão, Sílvio Santos, Edna Savaget na Bandeirantes, mais o inenarrável Bolinha e o seu Clube. Roberta Close estreava na Manchete e colocava a palavra 'transsexual' no dia-a-dia do povão. E Roberto Carlos já fazia o seu especial no fim-de-ano da Globo, como sempre. O meu Brasil brasileiro ofereceu-me o Rio de Janeiro para uma simbiose perfeita, três bons anos de paixão mútua que me levaram por caminhos de encanto impossíveis de descrever aqui, não é sequer o tempo ou lugar. Mas de vez em quando ouço o canto das sereias, ecos da Sapucaí, talvez. E sai-me dos dedos este Brasil que foi o meu. Brasileiro, definitivamente.