Dias de Melo, escritor livre
Os amigos adivinham-se, cada vez me convenço mais. Seriam umas cinco da tarde de ontem quando recebi o curto escrito do meu amigo Daniel de Sá: «Não vais dizer nada acerca da morte do Dias de Melo?», queria saber. Saiu-me um palavrão irrepetível. É que eu estava há horas e horas à roda da cauda, folha em branco, sem saber o que fazer e dizer. Desde que vi a notícia, anteontem. Não porque me faltem palavras, arranjam-se sempre; e juntando uns espargos frescos até compõem um raminho decente e a coisa passa, que eu sei. Mas havia dois factores inultrapassáveis. O segundo é a vergonha na cara que vou tendo, enfim, mais ou menos, não me passa pela cabeça alinhar no Manchester na vez do Ronaldo. E o primeiro, razão de ser do segundo, tem a ver com o respeito que é devido à verdadeira amizade entre dois seres, não aquela da palavra fácil, mas a outra, das (muitas) horas difíceis. Como era a de Dias de Melo e Daniel de Sá, dois nomes grandes da literatura nacional nada e criada nos Açores. Chutei de volta, disposto a implorar. Mas não foi preciso. É grande, o meu amigo Daniel. E sabe que eu choro com ele a perda comum a nós quatro, minha, dele, da nossa terra e da nação imensa da língua portuguesa.
Em baixo: "Dias de Melo, escritor livre"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá
O remo que Dias de Melo não usou por profissão não terá feito falta na vida dos baleeiros do Pico. Alguém o terá manejado por ele. Mas a sua escrita não poderia ser substituída por nenhuma outra, por nenhuma de outro.
A minha admiração por ele vem do tempo em que eu era ainda um rapaz a sonhar que haveria de escrever umas coisas. Depois, na idade adulta, o destino juntou-nos numa grande amizade. Eu disse-lhe um dia que, felizmente, a literatura não era como o desporto, em que só há um vencedor. E lembrei o combate de Rocky Marciano com Joe Louis, em que, depois de Rocky ter vencido, voltou as costas ao adversário tombado no chão. Alguém o censurou por essa atitude deplorável. Mas ele, para quem Joe Louis fora um ídolo, respondeu que o fizera para ninguém ver que chorava.
Dias de Melo nunca teve de provar que era mais forte do que eu. E eu nunca tive de sentir a angústia de sair derrotado ou de tentar derrotar um bom amigo. Ele fizera de mim seu confidente. Nas muitas horas que passávamos ao telefone, contava-me e recontava-me histórias do seu Pico, dos seus baleeiros, de trancadores lendários, de mares embravecidos, de vidas em risco constante. E falava-me dos livros que ia escrevendo e dos que pensava escrever. Dizia-me, nos últimos tempos, que só queria conseguir mais um. Não conseguiu.
Dias de Melo ficará para sempre conhecido como o escritor das baleias e dos baleeiros. Nenhum baleeiro de Dias de Melo será jamais enterrado no chão do esquecimento. Ele garantiu a todos a perenidade da vida na memória das gentes. E, tal foi a força da luz que lançou sobre o palco da vida dessa gente do seu Pico, que como que se fez uma espécie de penumbra a respeito da baleação que houve em todas as outras ilhas dos Açores.
Mas Dias de Melo foi muito mais do que isso. Onde houvesse uma causa justa a defender, uma injustiça a combater, aí estava presente com a sua palavra iluminada e iluminadora, com o seu talento de escritor reconhecido como grande, enorme, sem precisar de peregrinar pelas “capelinhas” onde se decide o mérito na capital da Pátria e da cultura portuguesa.