Do Nordeste à Povoação
Sente-se, por favor. A viagem vai começar. Esqueça o cinto e pode até beber que não vai conduzir mas sim ser conduzido, por mão de mestre, sobretudo nestes caminhos que ele conhece como ninguém. Por dentro e por fora. Sabia que os caminhos têm um lado de dentro? Pois é, têm mesmo, um lado dentro da gente e feito de Vida sob incontáveis formas que, dizem, Deus criou numa semana de particular inspiração. Pois o meu amigo Daniel de Sá, caminheiro com provas dadas em muita prosa andada, muita alma lida, leva-nos hoje pelos caminhos mágicos da minha ilha, da nossa ilha. Depois de Santa Maria, é em S.Miguel que ele se sente mais à vontade para cirandar, nas mãos o bordão das palavras e no peito uma oração reverente por cada maravilha que vai descobrindo, na terra ou na gente. E hoje, generoso, desce à partilha connosco. Por isso sente-se, se faz favor. A viagem vai começar.
Em baixo: "Do Nordeste à Povoação"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá
O viajante esquece a beleza triste dos povoados por que passou. Tinham todos a cor dos dias cinzentos do Inverno. Como se nunca houvesse sol durante o dia nem luar nas longas noites. O que aquela gente sofre por estar viva! Há em todos, no entanto, uma delicadeza natural, uma boa educação que lhes anda agarrada à alma como as urzes e as queirós nas ravinas mais inacessíveis. Muitos anos mais tarde, até os lavradores e o gado, entre pasto e pasto, hão-de passear por caminhos de asfalto. E a beleza triste e cinzenta dará lugar a um permanente arraial de cor. Desde a Salga, com os seu jardins de caleidoscópio, até à apoteose da Vila do Nordeste, o viajante há-de surpreender-se com as flores à beira dos caminhos, nas casas e nos quintais, ou mesmo cobrindo os troncos de palmeiras na Fazenda.
Passando a ribeira dos Caimbos, num longo rodeio pelo sopé do Lombo Gordo, o viajante muda de concelho. Mas a paisagem não sabe disso, e permanece igual. Montanhas à direita, o mar à esquerda. Ravinas, arribas, precipícios. Sempre entre o susto e o sonho. Vem aí Água Retorta, ou vai-se por aí a Água Retorta, que dá as boas-vindas a quem uma légua atrás entrara no concelho da Povoação. Se fosse ave ou vento, teria andado metade disso somente. E, sendo a terra tão enrugada, tão áspera para caminhar nela e tão suave para nela pôr os olhos, acaba-se a pique sobre o mar, onde cai volteando a água de uma ribeira que, por ser assim, recebeu nome e o deu ao povoado. Um povoado que parece dois. Porque em terra chã fica o núcleo à volta da igreja, que é de Nossa Senhora da Penha de França, e mais acima se desenvolveu outro, obedecendo aos declives do lugar.
O viajante não sente cansaço, porque cada recanto visto é um prémio para a longuidão da jornada. Mais outra légua, chega à estrada que desce para o Faial da Terra. Caminho que é de ida e volta, e que se torce e retorce para não ser quase vertical. E de repente a terra se faz plana, pequena fajã que uma ribeira atravessa dividindo o povoado em duas partes. Voltando as costas ao mar, pode parecer que se está numa aldeia dos Alpes. E as ondas não precisam de se elevar muito para respingarem a terra que ali lhes fica quase resvés. Um pouco mais de ânimo, e podem até acabar como que ajoelhadas à porta da igreja de Nossa Senhora da Graça.
Por entre os montes que encaixilham a paisagem, uma dúzia de casas às quais o tempo esvaziará de gente e as intempéries se encarregarão de esventrar, de cegar as janelas, de escancarar as portas. É o Sanguinho. Mas aquelas casas hão-de ser depois recuperadas, reabilitadas, calafetadas, electrificadas, canalizadas. Para fingirem ser o que eram em condições de bem receber turistas. Não importará, porque a natureza há-de permanecer igual e milenar. Viver ali só poderia ter sido ideia de poetas, de eremitas ou de pobres.
(texto inédito a ser incluído em livro a publicar pela Ver Açor.)