Hoje é o dia mundial do meu amanhã
Os dias mundiais disto e daquilo irritam-me um nadita, confesso. Ele é o dia da árvore e lá vai ministro com pazinha para plantar uma, o dia sem carros e lá vem presidente de helicóptero para andar a pé, o dia do livro e toma lá uma injecção cultural que dê até para o ano e pronto, já está. E no resto do tempo novelas e Herman, Goucha e Malato, manhã à noite. Daí a irritação, embora zinha. Mas também quase tudo me irrita, por estes dias. Estou velho, é o que é. Pois nem de propósito: hoje é o Dia Mundial do Idoso, outra palavrinha que me arrebita o pelame, tamanha a irritação. Idoso é o quê, exactamente, uma espécie de delicadeza esfarrapada que se usa em vez de 'velho', a vaselina, um amaciador? E delicadeza porquê, se há lá coisa mais linda e terna que a velhice digna, brancos genuínos e olhar antigo, amor velho e gasto de dores e coração velho e gasto em amores?
Eu cá julgo saber porquê, talvez: a culpa, a hipocrisia, a vergonha de cão e a consciência social pesada que ficam do tratamento dado à maioria dessa minoria, nos tempos que correm, tal como a outras, de resto, no nosso viver colectivo. Talvez seja isso, quem sabe? Reparem que há quem não diga, apenas escarre, 'velho' ou 'preto', por exemplo, caso igual. Mas as palavras são o que são e dizem apenas o que com elas quer dizer a sociedade que as inventa e usa no seu viver. A carga que leva cada uma vai na vontade do freguês, invente-se uma ASAE para o preconceito e a coisa melhora, estou em crer.
Por mim já jurei, todos sabem, os que ainda têm pachorra para me ouvir as juras e mais os poucos de entre esses que ainda vão acreditando nelas: deixem passar mais uns aninhos, só vos digo isto. Deixem lá passar mais uns aninhos e o primeiro que me chamar idoso apanha, tá jurado, seja próximo ou afastado, desde que esteja suficientemente próximo para eu lá chegar com a bengala. Vou atravessar as ruas devagarinho, muito devagarinho e rosnar "Idoso é o teu avô, ó pá!" ao primeiro sacaninha que se atrever a ser condescentente e paternalista com a minha velhice. Ando até já a treinar ao espelho, sempre que posso. Só espero que nessa altura ainda consiga esticar o dedo médio, pelo menos. Senão a coisa não resulta tão bem.