E tudo o vento levou
Sim, está vento. Está vento com’a porra, diz-se por estas bandas onde o soprar divino vem batendo os noventa e cinco quilómetros por hora, noventa e cinco quilómetros por hora, vai por extenso e duas vezes para que melhor sintam a ventania que me leva o chapéu e estraga a pose dez vezes por dia, contas por baixo. Já cá se sabia que Deus tem sentido de humor, afinal criou a mulher, era por isso desnecessário pandegar com o meu chapéu. Mas sempre areja as ideias, dirão os mais engraçadinhos. E digo eu que sempre faz notícia da desgraça, quase sempre de dor anónima, o que também é um ponto de vista. E assim dizendo coisas vamos conversando, o que vem sendo raro nos últimos tempos, lamentavelmente. Bons ventos tragam então os bons hábitos também de volta.
Regresso a Portugal mesmo a tempo de conhecer uma nova estrela dos telejornais, cintilante e emergente na galáxia ‘Cláudio Ramos’ das celebridades nacionais (há outras galáxias, montes delas, são quase mais do que as celebridades propriamente ditas). Trata-se de um tal Gonçalo Amaral, ex-inspector da PJ que se distinguiu por numerosos insucessos de investigação (com natural destaque para os casos Joana e Maddie McCann) prestação que, junta a umas quantas chapadas nos interrogatórios que não foi possível ocultar, ditou a sua guia de marcha daquela força policial com carimbo ilegível, qualquer coisa algures entre a incompetência e o abuso de poder, tudo mais o desbocanço arrogante que lhe apura o estilo caceteiro e o revela nascido para a fama.
Ambos agora à solta, ele e a língua, deram entrada no estrelato civil pela porta já usada pelo insubstituível Moita Flores, esse comentador 3,4,5,6 em 1, espécie de Black&Decker do gorjeio especializado, sequim d’oiro do bitaite que vai à televisão. Pois Amaral para lá caminha a passo seguro, distinguindo-se já pela prosa esmerada onde julga e condena sumariamente tudo e todos, numa abundância de bílis que se mistura com o sangue habitual nas páginas do não menos mau 24Horas, numa parceria que ameaça piores dias, quase garantidos. Antes porém publicou um livro que traz o desaparecimento de Maddie contado às crianças e aos estúpidos que fazem o Estado português, uma edição com o sucesso comercial que se adivinhava. E hoje, como ontem e desde que começou a ser julgado por ter espancado e/ou autorizado e ocultado o espancamento de Leonor Cipriano nas instalações da PJ de Portimão que supervisionava ao tempo, fez a abertura dos telejornais desde a manhã.
Com ele sentam-se no mesmo banco dos réus mais quatro elementos da PJ envolvidos nas agressões brutais. A estratégia da defesa, comum aos cinco acusados, é que Leonor mente como terá mentido antes sobre a morte da filha. Quanto às fotografias que documentam as agressões, onde a mulher que cumpre prisão pelo homicídio da filha Joana aparece negra e moída de pancada, alegam os advogados dos réus que se tratam de falsificações e ao fazê-lo conseguiram que a acusação se veja obrigada a provar o contrário, diligência que esta se apressou a prometer cumprir. Eu cá já nem falo na subversão total da responsabilidade do ónus da prova que representa este advogar circense, nem discuto a possibilidade da falsificação porque outros o estarão a fazer, abundantemente. Só gostava que alguém me explicasse se a directora da cadeia de Odemira, que ordenou a sessão fotográfica e apresentou queixa dos responsáveis pelo interrogatório de Leonor na mesma hora em que a viu chegar da tal sessão de perguntas naquele estado, também está a mentir. Isso eu gostava de perceber, não só por não gostar do estilo de Gonçalo Amaral mas sobretudo por não gostar de olhar para o banco dos réus, de um lado, e para Leonor Cipriano, do outro, e ver afinal a culpa tão mal sentada naquele tribunal.