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Sete Vidas Como os gatos

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Sete Vidas Como os gatos

28
Out08

Vila Franca do Campo

Rui Vasco Neto

Se bem se lembram, iniciámos aqui uma viagem pelos caminhos mágicos da ilha de São Miguel, guiados pelo verbo superior do meu amigo Daniel de Sá (este garboso pedaço encanecido que agora podem contemplar a cores nesta foto, roubada de noite ao blog da nossa amiga Cris, se quis uma). Pois bem, está mais que na hora de retomar a marcha interrompida e recuperar o embalo destas palavras que serão brevemente editadas em livro pela Ver Açor. Já fomos do Nordeste à Povoação, agora é tempo de conhecer Vila Franca do Campo pelos açorianos olhos deste autor de rara sensibilidade, em mais uma etapa desta viagem de puro prazer. Um prazer muito particular, neste caso e para mim. É que falta aqui dizer que a Vila é minha, toda minha, pertence por inteiro à paixão mútua que nos une, a mim e àquela terra onde moram os irmãos que escolhi ter. E onde passei momentos da mais pura felicidade, sob o olhar vigilante da Senhora da Paz. Mas pronto, eu cá não sou egoísta nos amores, fiquem à vontade e apreciem a vista privilegiada que se tem daqui, debruçados na escrita deste senhor da fotografia. O gajo. O tal Daniel.

 

Em baixo: "Vila Franca do CampoAo princípio foi aqui"

Sete vidas mais uma: Daniel de Sá

 

 

Há coisas e animais que estão na paisagem como se fizessem parte dela desde o princípio do mundo. Ou como se fossem o que resta do paraíso terreal: Árvores em fila indiana, no horizonte, sobre uma linha de festo, como desenhos infantis. Coelhos assustados atravessando a estrada em busca da refeição vespertina. Melros, sem pressa, recolhendo ao lusco-fusco. Pequenos núcleos de casas antigas em contracena com a paisagem...

 

Há um destes lugares que o viajante sempre entendeu assim, desde a surpresa da primeira vez que o avistou, de súbito revelado, depois de uma curva da estrada. O lugar da Praia, na freguesia de Água de Alto. Uma vintena de casas, talvez nem isso, entre duas ravinas que ladeiam a ribeira que escoa a água excedente da lagoa do Fogo. Não poderia haver melhor postal de boas-vindas para quem entra, pelo Poente, no concelho de Vila Franca do Campo.

 

Vila Franca, o município primaz da ilha. Na costa Sul, onde houve a primeira povoação, a primeira vila e a primeira cidade. Mas nem a primeira povoação foi a primeira vila, nem a primeira vila foi a primeira cidade. A primazia de Vila Franca do Campo perder-se-ia nas ruínas em que a transformou quase por completo a enorme derrocada de terras provocada pelo terramoto de 22 de Outubro de 1522. Faltava-lhe pouco tempo para completar meio século como vila e cabeça de toda a ilha de S. Miguel.

 

Depois da tragédia, foi preciso começar de novo. O viajante entra, sempre que pode, na bela matriz. Símbolo desse recomeço, dessa vontade de permanecer no lugar a que o coração se apegara. Símbolo porque foi reconstruída à semelhança do templo soterrado em lama. E porque expressa a crença de que os homens não se sentiam sós na desolação daquele vale de lágrimas. A torre e a fachada fazem lembrar a velha e ascética arquitectura românica, com uma incrustação de gótico a bordar a porta. Dentro, uma sucessão de altares e elementos decorativos que podem julgar-se um excesso ou um delírio. Mas que são um extraordinário espectáculo estético e místico. E à sua volta fez-se uma vila airosa e arejada, com ares de Renascimento nas proporções e no traçado das ruas.  O pouco que restou depois da terrível subversão foi para os lados da freguesia de S. Pedro, onde se construiu logo depois da catástrofe uma ermida dedicada a Nossa Senhora do Rosário. E talvez tenham sido as orações nela rezadas que estiveram na origem das Romarias quaresmais.

 

Como quase sempre e em qualquer parte na Europa, foi a arquitectura religiosa o melhor que Vila Franca herdou dos séculos passados. Porque então os homens ainda não tinham substituído Deus por outros deuses menores. Em frente da matriz de S. Miguel Arcanjo, permanece o testemunho da caridade cristã no hospital da Misericórdia e na igreja anexa do Espírito Santo. Aqui se venera a imagem do Senhor Bom Jesus da Pedra, que tem uma das maiores festas da ilha, no último fim-de-semana de Agosto. As madeiras do que resta do convento de Santo André – a igreja e o locutório – têm o cheiro de quatro séculos de história. E a ermida de Nossa Senhora da Paz é um lugar de peregrinação dos crentes ou dos simples amantes das grandes paisagens. Mas uma árvore também pode ser um monumento. Como o dragoeiro plantado no dia em que se casou o rei D. Luís, seis de Outubro de 1862. No jardim enquadrado pelos Paços do Concelho, pela igreja matriz e pela Misericórdia.

 

A zona urbana do concelho é um caso único em S. Miguel. As suas freguesias ligam-se praticamente umas às outras. Encostada à vila, e para nascente, está a Ribeira Seca, depois a Ribeira das Tainhas e, na continuação, a Ponta Garça. O comprimento desta, a mais populosa das seis, é famoso em toda a ilha. Mais de uma légua de extremo a extremo. O que faz com que a procissão da padroeira, Nossa Senhora da Piedade, alterne em cada ano o percurso, que uma vez se faz para Nascente e outra em sentido oposto. De S. Pedro, e na direcção do Poente, entra-se logo em Água de Alto.

 

Tudo lugares que merecem do viajante um olhar sem urgência. E com praias muito concorridas por perto. A da Vinha da Areia é local não apenas de banhos mas de grandes festivais de música. A piscina do ilhéu da Vila, um círculo quase perfeito, é um prodígio da natureza. O que resta da cratera de um vulcão extinto, a um quilómetro da costa e com 150 metros de diâmetro. O conjunto, que inclui o mar circundante, é reserva natural. No Verão, a praia de Água de Alto enche-se de gente que mal deixa livre um palmo de espaço. No Inverno, é um idílico oásis de areia entre a imensidão da água do mar e o persistente verde da terra.

 

(texto inédito a ser incluído em livro a publicar pela Ver Açor.)

 

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