Família, castanhas e S.Martinho
Uma vida inteira a meter o nariz na vida dos outros é no que dá. Nas notícias de hoje vejos os acontecimentos de ontem, só que com outras caras. Como a daquele homem, novo ainda, coveiro desde sempre naquele cemitério algures numa freguesia perdida num dos cerros que pouco mais distam do Funchal do que uns escassos vinte ou trinta minutos de carro. E que estão no entanto á distância dos muitos anos que passam sem que lá ponham os pés, as vidas de muitos dos que por lá conheci nados e criados, incluindo um casal de velhotes que nunca tinha visto o mar, sequer, apesar de filhos da ilha... Mas voltemos ao coveiro da minha história, um quarentão magro e sem dentes cujo pai já era coveiro daquele mesmo cemitério desde que o seu avô parou de enterrar a vizinhança e foi dele o dia e a hora de ali ficar de vez.
Tinha o brio no sangue, portanto, este loquaz profissional da pazada que teve a rara oportunidade de se vingar dos anos de clientela silenciosa naquele dia de 1996 em que me conheceu, a braços com uma reportagem deliciosa para a TVI sobre um morto que foi a enterrar com um casaco emprestado pela mulher do vizinho que, coitada, não conhecia o esconderijo do marido para as poupanças da família que ele há anos e anos guardava no forro do dito casaco. Resultado? Só vos digo que aquela coisa do eterno descanso ali não funcionou, menos de uma semana depois de entrar lá teve o morto que sair para despir o casaco e dá-lo ao dono, na presença do Ministério Público. E do nosso coveiro, claro, que me contou tudo sobre esse morto e, no embalo, mais ou menos pela ordem das campas, também sobre o resto do pessoal todo que lá estava, já agora, vida e morte com pormenores, familiares e relativos, sendo que a freguesia era pequenita e eu até estava com tempo nesse dia. Acabou por ser uma tarde agradável, no fundo.
Pois dela recordei hoje a historieta que origina esta crónica, um filho que não suportou um mês de ausência da mãe e foi desenterrá-la para a levar para casa, onde a polícia a foi buscar no dia seguinte, sentada no sofá de sempre. «Só que o homem enganou-se, no escuro, e não levou a mãe, não senhor», conta-me o meu coveiro em êxtase de fim de história: «Levou a D.Rosa ali do 12, que já cá estava há uns dois meses, pr'aí! Eu bem vi que fui lá buscá-la ao colo: estava seca como uma castanha!»