Parecenças
Já vos falei da caixa de correio cheia, das palavras que bateram com as vírgulas na porta enquanto eu fui ali e já vim. Estas são dessas, vêm de um amigo de letras que as trata com um jeito tão singular que elas parecem mais brilhantes que as minhas, mais polidas, mais e melhor arranjadas para sair. E eu pareço aquela vizinha invejosa que um dia lhe há-de descobrir a marca do segredo que usa para as trazer assim, bonitas como estas que me deixou no último dia de 2008 com um bilhete preso e que eu só li no ano seguinte: «Grande Rui: Mando-te uma história, das do tal género maluco, para o teu blogue, se lá couber.» Pfff, 'se lá couber', calculem... danadinho para escarnecer da pobreza, este meu amigo, digo a rir. Falando a sério? Um senhor, é o que ele é. E um senhor escritor. Fernando Venâncio.
Em baixo: "Parecenças
Sete vidas mais uma: Fernando Venâncio
Detesto a cara dele. E o sorrir dele. E o andar dele. Para ser sincero, detesto nele tudo. Evito cruzar-me com ele, inicio já de longe desvios impensáveis. Mas será ele desagradável? Feio? Disforme? Longe disso. De modo nenhum. E essa é, já, uma parte da razão.
Vou direito ao assunto: ele parece-se com um grande amigo meu. Trata-se de um fulano conhecido do público e por quem tenho um apreço desmedido. Parece-se com ele, disse eu? São duas gotas de água. Esta gota é, concedo, um tudo-nada mais jovem, mas acredite-se: quando ele se me pespega na frente, isso de mais jovem não ajuda puto. É sempre àquele outro, ao meu amigo, que ali vejo. E isso confunde-me, troca-me o neurónio, como um paradoxo inútil. É tipo aqueles cubos desenhados, só arestas, em que as profundidades se cruzam e descruzam. Mas agora na versão parva.
Já me apeteceu contar-lho. Simplesmente confessar. Dizer assim: «Desculpe lá, amigo, a gente nem se conhece a bem dizer, mas acontece o seguinte: você, desculpe tratá-lo assim, você faz-me sempre lembrar o... (e citaria o ilustre nome), e por isso o miro e remiro, por isso fujo de si.»
Mas nunca consigo. Ele esgueira-se, felino, etéreo, risonho. Sim, é aquele sorriso que me mata. E que, se ele não se acautela, um dia destes há-de matá-lo mesmo.