A meio caminho do céu
Na minha terra nasce-se e morre-se a meio caminho do céu com alguma frequência. Talvez daí a benção que trazemos por vir ao mundo em lugar tão abençoado pela divina ironia. Decalcados na beleza vamos brotando do basalto como flores da terra, e as nossas histórias vão fazendo a história deste Portugal supostamente de todos, quase sempre pelo que têm de invulgar, pelo estranho, distinto, logo notícia. Ora nascer e morrer já raramente é notícia hoje em dia, convenhamos, isto se não contarmos com o Michael Jackson ou com os infantes de D:Letízia de Bourbon, evidentemente. Mas na minha terra há uma senhora das Flores (ou será de S.Jorge?) que já deu à luz não sei se dois se três filhos no mesmo aviocar da Força Aérea, de resto a tripulação que fez os partos foi a mesma e tudo, o último deu recentemente na RTP-Açores e passou no continente à hora do jantar e seguintes, tudo a cores, está visto. Depois a vida seguiu a sua marcha, claro, até ao próximo gaiato vir dali ainda há-de faltar um bocadito, que diabo, por isso siga o Afeganistão e o Freeport, Portas e Louçã mais a TVI e o Preço Certo em Euros e Portugal avança, nas ilhas igual, só que mais devagarinho. E hoje um doente do hospital de Ponta Delgada piorou a meio do voo que o traria a Lisboa para tratamento por cá que não há por lá. Com apenas meia hora de voo o avião teve que regressar a Ponta Delgada com 192 passageiros a bordo, 192 passageiros que depois de amadurecerem a irritação do contratempo, mais os contratempos efectivos e eventuais prejuízos pessoais que a situação acarretou, tudo temperado com o que ainda lhes restar nas almas de solidariedade e compaixão humanas e bem centrifugado pela força do inevitável e ausência total de alternativa durante umas quantas horas, vão talvez olhar as ilhas e sentir o rugir dos oceanos e ver aqueles horizontes longínquos que se vêem nos filmes e nas férias de uma outra forma, diferente por um breve, muito breve mas muito intenso momento. Vão ser ilhéus, por dentro, num instante. E quem sabe se por obra e graça desse momento, subindo e descendo nas mãos de Deus entre tanto aterrar e levantar, empurradas para a compaixão inadiável, algumas daquelas pessoas não encaram e aprendem a vida por uma vez, uma qualquer que tinham algures lá atrás quando ainda tinham os pés no chão, quando ainda não sabiam que na minha terra se nasce e morre a meio caminho do céu com alguma frequência, como em toda a parte. E que essa sim, é a suprema ironia divina.