Ver as horas
Esta semana pus um relógio, há anos que tinha deixado de usar. Nenhuma aversão ao tempo, nada disso, afinal ele leva-me de embalo na mesma e ignorá-lo não resolveria o problema, ainda que existisse um. O que não, não é o caso, a história do relógio é outra e eu próprio já a esqueci. O assunto agora é que voltei a andar com as horas no pulso, todos os minutos ao segundo para eu contar, esticar, cumprir, contornar, enfim, está lá a medida que marca e define a viagem, a parte do itenerário é que é comigo, depende de mim. Só tenho que olhar, consultar, checar os limites e seguir em frente, passo a passo, tic a tac, na velocidade que quiser e por rua, estrada ou vereda à escolha. Tudo o resto é suposto acontecer, tão simplesmente. Pfff. Se é assim tudo bem, afinal não custa, passo a usar.
E já que o tenho lá vou olhando, de quando em vez, mesmo quando não me faz diferença nenhuma serem oito e catorze ou dez e vinte e cinco. Olho só pelo hábito que entendi dever criar de saber a quantas ando. E o mal de olhar, é sabido, é que às vezes a gente vê mesmo, até aquelas coisas que não dão jeito ver na circunstância ou que nós passávamos bem sem nos lembrarmos que lá estão, escarrapachadas por detrás da visão perfeita que construímos em espírito daquilo que miramos por mero vício de mirar. O caso do meu relógio novo, por exemplo, é paradigmático. Olho para ver que são nove e vinte e acabo a constatar que a vida corre em sentido único, no caso o dos ponteiros, tic por tac mas sempre pela direita, aparentemente. E não, não é piadinha política, é só um lembrete pessoal das muitas vezes que entendi ir pela esquerda berrando que o mundo seguia em contramão... Mas vejo mais, vejo as horas e os minutos e ao somá-los percebo que passam apenas em função do que somos para os outros e não para dar chão ao que julgamos ser, erro em que muito incorri em tempos de miopia, às vezes cegueira da pior: aquela que nos embala no maior dos enganos ao garantir-nos que somos dias, somos meses, somos anos nas vidas daqueles que dizemos amar. Quando afinal um simples relógio, bem olhado, nos mostra que não passamos de um segundo fugaz, um mero nanocoiso perdido numa imensidão de milénios que tantas e tantas vezes vivemos sem vislumbrar, sequer ao longe. Ou, pior, que assim morremos sem saber a quantas andámos.