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Sete Vidas Como os gatos

More than meets the eye

More than meets the eye

Sete Vidas Como os gatos

24
Jun11

Palavras, preciosas palavras.

Rui Vasco Neto

Às voltas com esta implacável obrigação de estar vivo vou cumprindo etapas à razão de uma por dia. Sempre em busca de orientação, de explicação para tudo, de pistas que me levem à descoberta de algum sentido para este existir que é condenação e privilégio, alegria e desespero, luz e escuridão. Que é tudo e tudo pode ser, até nada. Por feliz acaso saltam-me ao caminho as palavras de mestre Agostinho da Silva, figura incontornável das minhas referências e uma seta sempre segura para qualquer viajante que busque direcção para os seus passos, ou simplesmente a alegria para os dar. Que procure enfim a felicidade. Leio as palavras que nos deixou escritas e recordo as muitas outras que me entregou de viva voz, embrulhadas para oferta naquele rir sem dentes que até hoje ecoa na minha memória, juntamente com a frase que me repetia invariavelmente em cada conversa: "A cabeça só serve a quem tem cabeça", dizia-me rindo e sempre a sério, antes de repetir olhando-me nos olhos: "A cabeça só serve a quem tem cabeça". Nunca quis perceber o que me queria dizer com aquilo. Não faço a mais pequena ideia, até hoje.

 

 

«Não creio que se possa definir o homem como um animal cuja característica ou cujo último fim seja o de viver feliz, embora considere que nele seja essencial o viver alegre. O que é próprio do homem na sua forma mais alta é superar o conceito de felicidade, tornar-se como que indiferente a ser ou não ser feliz e ver até o que pode vir do obstáculo exactamente como melhor meio para que possa desferir voo. Creio que a mais perfeita das combinações seria a do homem que, visto por todos, inclusive por si próprio, como infeliz, conseguisse fazer de sua infelicidade um motivo daquela alegria que se não quebra, daquela alegria serena que o leva a interessar-se por tudo quanto existe, a amar todos os homens apesar do que possa combater, e é mais difícil amar no combate que na paz, e sobretudo conservar perante o que vem de Deus a atitude de obediência ou melhor, de disponibilidade, de quem finalmente entendeu as estruturas da vida(..). Os felizes passam na vida como viajantes de trem que levassem toda a viagem dormindo; só gozam o trajecto os que se mantêm bem despertos para entender as duas coisas fundamentais do mundo: a implacabilidade, a cegueira, a inflexibilidade das leis mecânicas, que são bem as representantes do Fado, e cuja grandeza verdadeira só se pode sentir bem no desastre; é quando a catástrofe chega que a fatalidade se mede em tudo o que tem de divino (..). Por outra parte, é igualmente na desgraça que se mede a outra grande força do mundo, a da liberdade do espírito, que permite julgar o valor moral no desastre e permite superar, pelo seu aproveitamento, o toque do fatal; não creio que Prometeu estivesse alguma vez verdadeiramente encadeado: talvez o estivesse antes ou depois da prisão; mas era realmente um espírito de liberdade e um portador de liberdade o que, agrilhoado a montanha, se sentiu mais livre ainda; porque podia consentir ou não no desastre, superá-lo ou não, ser alegre ou não. (..) No fundo é o seguinte: é necessário, ajudando a realizar o homem no que tem de melhor, que a mesma energia que se revelou pela física no mundo da extensão, se revele pelo espírito no mundo do pensamento e domine a primeira vaga de energia, como onda rolando sobre onda mais alto vai. E mais ainda: que pelo momento de infelicidade, o que não poderá nunca suceder no caso da felicidade, entenda o homem como as duas espécies ou os dois aspectos de energia se reúnem em Deus. Só por costume social deveremos desejar a alguém que seja feliz; às vezes por aquela piedade da fraqueza que leva a tomar crianças ao colo; só se deve desejar a alguém que se cumpra: e o cumprir-se inclui a desgraça e a sua superação.»

 

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

 

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