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Jun11
Conversa da treta, óculos verdes.
Rui Vasco Neto
Se havia dúvidas que a comunicação é uma arte, esta notícia que se segue elimina-as totalmente. Aliás nem é bem a notícia, é mais o combinado título/notícia/comunicado que faz as delícias de qualquer amante da arte de comunicar e oferece a todos os outros uma definição rigorosa e original do verbo "sacar" ou mesmo uma nova e polida versão da expressão "ir ao bolso". Isto sim, é a conversa da treta em todo o seu esplendor! Ora vejamos.
O título diz quase tudo, dá-nos logo uma boa ideia do essencial: «Estacionar o carro em Lisboa vai ficar mais caro a partir de 4 de Julho». Depois vem a notícia propriamente dita: «Estacionar o carro em Lisboa vai ficar mais caro. Os preços vão subir já a partir do próximo dia 4 de Julho e os aumentos podem chegar aos 50% em determinadas zonas da capital.» Perante isto falta o quê, apenas? Os preços exactos, claro, o rigor do tostão nas novas tarifas ditadas pela EMEL e já agora, quem sabe, uma justificaçãozinha para este aumento que dificilmente pode atribuido à crise, essa mãe de todos os aumentos que agora castigam sem dó o quotidiano dos portugueses. Afinal, aumento de custos da matéria prima é que não podia ser de certeza, não me consta que tenha subido o aluguer das ruas, nem mesmo com a crise... E é aqui que vem à tona todo o imenso talento do artista que redigiu o comunicado da EMEL que faz a notícia e explica aos lisboetas a verdadeira razão do esbulho que aí vem. Reparem no léxico requintado, no floreado irrepreensível, no estilo escorreito da prosa que tudo explica: «Houve necessidade de adequar o tarifário de estacionamento, até aqui igual em toda cidade, ao comportamento da oferta e da procura.» Irra, impressionante, não? É de uma honestidade desarmante, reconheça-se. Preto no branco a EMEL explica-se bem: onde houver mais procura a oferta passa a custar o que a gente quiser, e porquê? Porque podemos fazê-lo e porque o lisboeta não tem outro remédio senão pagar. Ponto final. È evidente que estas são palavras minhas, cruas e pobres, na explicação da EMEL as palavras têm outro sabor, outro conforto... É outro cantar, decididamente: «A empresa criou um sistema com três zonas, aposta num tarifário de progressão linear simples e de fácil compreensão por parte do público e na acessibilidade média em transportes públicos, quer dentro de Lisboa, quer da periferia para o centro.» Como se pode ver, tudo muda de figura quando é assim bem explicadinho, numa progressão linear simples e de fácil compreensão por parte de um público que só pode estar já meio grato, nesta altura do comunicado. Ou seja, no ponto certo para receber a traulitada dos cifrões, mais uma vez dada com inexcedível doçura: «O custo nas chamadas zonas vermelhas onde existe elevada rotação de estacionamento e marcada por intensa concentração de comércio e serviços e elevada oferta de transportes públicos, passará a custar 1,60 euros na primeira hora (em vez dos habituais 0,80 euros) e de 3,29 euros na segunda hora. A partir daí, o condutor é obrigado a abandonar o local de estacionamento, já que o tempo limite de paragem nestas zonas passa a ser de duas horas. As avenidas de Berna, João XXI, República, António Augusto Aguiar e Liberdade, assim como as praças de Londres, Príncipe Real e a zona Baixa/Chiada compõem esta zona.»
A notícia continua com os números relativos às zonas amarela e verde e mais uns quantos quilitos de palha pelo meio, os senhores podem consultar tudo aqui, todos os pormenores deste fait divers urbano, de casaca ligeira e banal como quem não quer a coisa, como de resto vestem todas as pequenas notícias sobre os grandes negócios. Para que a gente não se sinta intimidado pelo aspecto e pape tudo como quem gosta e ainda agradeça no final. E essa é a fina arte do comunicador, o suco da barbatana. Como que a expressão académica daquela velha técnica que se usa para que os burros comam a palha seca e pouco atractiva. É só pôr-lhes uns óculos escuros que a palha fica logo verdinha e apetitosa, como esta notícia. Com os asnos nunca falha, dizem.