Falando com o meu cão
Esta tarde passeei (eu & Gastão, claro, juntos como sempre). Foram horas e horas a fio, passo por passo repassando um dos mais bonitos percursos da minha vida, um sítio alto e arejado de onde se avistam, lá muito ao longe, largos e importantes pedaços de caminhos que já percorri (anos-luz lá atrás, é certo, mas com que estranha nitidez se enxergam daqui), como se no ar de repente fluísse uma qualquer dimensão intemporal onde por obra e graça da memória, apenas, tivéssemos a capacidade de visitar cada pegada deixada no chão há muito pisado, estradas antigas e não mais, nunca mais calcorreadas com a mesma intensidade de outrora… um verdadeiro milagre, digo-vos, até para um descrente empedernido como eu. Só que hoje a evidência calou-me a descrença com aquela força do que não tem discussão porque é e porque está, ali mesmo, entrando não apenas pelos olhos mas por todos e cada um dos cinco sentidos (dos seis, que digo eu?!) para fazer prova de vida a cada instante, a cada passo em frente, sempre em frente como manda a lei do existir neste mundo de Deus ou do diabo... Gastão adorou, em suma, e eu então nem vos falo: que bem me fez passar por ali!
Só para que me entendam melhor: imaginem uma estradinha sinuosa, linda na sua simplicidade, montanha acima, arvoredo a convidar à descoberta de um lado e falésia escarpada do outro, a pique cortando os ésses da subida e sugando do peito todo o oxigénio que cabe em cada respirar só de ver, só de olhar, só de mirar, mesmo de longe... Assim é este troço por onde passeei esta tarde e que faz como que um miradouro do lado da escarpa, como que um balcão com vista para o passado, o meu passado, o melhor da minha vida ali a uma distância segura, sem perigo de velhos e repetidos enganos… e lá muito em baixo, lá bem no fundo, lá muito ao longe, longe, longe, eis que se vê bem (pese a distância de meia vida), eis que sem engano se distingue cada milímetro dos incontáveis quilómetros percorridos em tempos que já lá vão (e eu com eles, credo, e eu com eles!), toda a beleza irrepetível do branco por sujar, da alma virgem, toda a vida sem pecado ali ao alcance de um gesto, de um desejo, de uma recordação…
Assim foi a minha tarde, flutuando feliz no mesmo mar de memórias onde há muito me afundei, puxado para um fundo de culpas pelo peso daquelas que nunca consegui largar mas que hoje, por uma tarde apenas, consegui enganar, esquecendo. E foi assim que de regresso a casa, de volta à cave escura onde todos os dias me sonho varanda, soberba sobre o oceano, chamei o Gastão à parte e ofereci-lhe o desabafo sentido da minha inconfessável verdade como só um grande amigo se entrega a outro grande amigo, nessa união sagrada de almas gémeas que por mais que se entendam nunca se comunicarão no mesmo linguajar, por falha divina na organização das coisas. Foi assim que lhe disse, tonto de felicidade, alma estafada, pingando remorso mas verdadeiramente eufórico por esta nova descoberta de um velho e esquecido sentir: «Cão: temos decididamente que fazer isto mais vezes!» .