Até ao incontornável 'Vidas Reais', a minha proximidade aos chamados reality shows não passava disso mesmo: próximo mas noutro fuso horário. Nos idos de 1986 já eu dividia o mesmo ecrán com Gugu Liberato, mas ele na dele e eu na minha, ambos na TvRecord/SBT, onde o meu patrão da altura, o ainda mais incontornável Sílvio Santos, apresentava o
creme de la creme da estação: um programa de onze-horas-onze, ao domingo, composto por onze-rubricas-onze, todas diferentes e com uma hora de duração. Uma dessas rubricas determinou para sempre a minha cultura pessoal e profissional.
Chamava-se '
Tudo por dinheiro' e era isso mesmo. Tudo por dinheiro. O que é que você está disposto a fazer por dinheiro? Uma hora disto, gravado. Sílvio escolhia uma rua, praça, um jardim. E interpelava as pessoas que passavam com uma mão cheia de notas. "
Você está disposto a fazer isto ou não?", perguntava Sílvio. E as notas iam saindo a cada negativa. "
E agora?". Mais notas ainda se era não e mais e mais, até à esmagadora maioria de sims. Eu juro que vi gente comer merda,
ipso factum. E tomar banho em fontes públicas, vestida e calçada, dançar e zurrar na calçada. Vi tirar a roupa, gatinhar e ladrar, toda a galeria de ilustrações populuchas tiradas da imensa e perversa imaginação de Sílvio Santos, génio televisivo e um dos maiores intrujões da comunicação mundial. E todos sorriam no fim, agradecendo e dizendo adeus para a camera, abraçados ao sorriso cintilante do patrãozinho.
O fascínio da televisão é isto. É o que é. Um fascínio,
do Lat. fascinu, encantamento, mau olhado, quebranto, diz o dicionário e eu acredito. Como que enfeitiçadas, as pessoas prestam-se a tudo pela pantalha. O 'Vidas Reais' era assim, claro. Todos os programas do género o são. Neste ponto é importante que se desiludam aqueles que esperam de mim rituais de arrependimento e uma boa negação em voz alta antes do galo cantar três vezes. Não vai acontecer. Fiz quase três anos de programas, entre diários e bi-semanais, sem que de um deles, para amostra, eu sinta vergonha pela minha prestação pessoal como moderador. Tenho orgulho no trabalho de comunicação que ali fiz. Mas vi coisas vergonhosas, é certo. A face feia e mórbida do vil exibicionismo. A natureza humana tem destes abismos negros, bem lá no fundinho das almas. E a fingir ou a sério, revelam-se no pior se lhe dão essa oportunidade na televisão. Encorajar essa tendência natural é acender um fósforo numa fuga de gás.
É público e sabido que a série 'Vidas Reais' terminou por comum desacordo entre mim e a produção do programa. Razões várias desgastaram uma relação que - só o saberá quem faz destas vidas, atrás ou à frente das cameras - foi muito intensa e muito tensa também, coisa que faz parte do próprio conceito de televisão em directo. Passaram dois anos sobre o final da série e nunca falei publicamente do assunto, exactamente por entender que não havia assunto para falar. Hoje, ao ler
este post sobre
este caso, entendi que era tempo de comentar o fenómeno 'Vidas Reais', mais que o programa em si.
"O Diário de Patrícia" é um
reality show da Antena 3 espanhola que é uma mistura de
'Fiel ou Infiel' e '
Ponto de Encontro'. Svetlana era uma jovem russa que aceitou ir ao programa para conhecer um homem que lhe propusesse casamento. Sem lhe dizer, a produção do programa aceitou a candidatura do ex-noivo de Svetlana, que depois de cumprir onze meses de cadeia por maus tratos infligidos e denunciados pela própria, foi ao '
Diário de Patrícia' ajoelhar, tirar do bolso o anel e propor novamente casamento à sua ex-vítima. Vá lá perceber-se porquê, a jovem disse que não. Vá lá perceber-se porquê, o homem matou Svetlana dias depois, ainda no eco da sua pública vergonha.
Dizem os brasileiros que '
não se cutuca a onça com vara curta' e têm razão. Picar e repicar o balão de emoções do povo com provocações afiadas por especialistas é um convite directo ao estoiro e ao barulho. E essa é a técnica das produções de programas como o '
Vidas Reais', o '
Fiel ou Infiel' ou o '
Diário de Patrícia'. É assim. Faz parte daquela específica arte de fazer. Sim, dirão os demagogos mais puristas, isso é arte? Claro que é. Criar as perfeitas condições no estúdio para alcançar um objectivo previamente definido em guião é nada mais que concretizar competência, que se traduz em pontos de audiência. Ninguém quer trabalhar em equipas fracas, seja em televisão, no futebol ou nas obras. Qual é o realizador que brilha em planos de corte de uma assistência apática? Qual é o produtor que mostra valor se só tiver duas cadeiras e um pano preto para arranjar? Qual é o apresentador que brilha sem uma luz em condições, um cenário digno, uma plateia activa, se for esse o tipo de programa? É preciso ir tão longe na baixaria, descer à sexta cave do óbvio para encontrar um bólide vencedor na corrida das audiências? Na minha opinião não, não era preciso. Por isso acabou o 'Vidas Reais'.
Ver o
'Fiel ou Infiel', o '
Você na TV', a '
Fátima Lopes' ou as '
Tardes de Júlia', é ver em acção o mesmo exacto princípio que faz o '
Prós e Contras'. Sem tirar nem pôr. Aqui d'el rei, dirão as sumidades do costume, grande disparate, que programas tão diferentes! Deixem-se disso. E das caganças de quem até nunca viu o Goucha, nunca, talvez só uma vez ou duas, taltrês. Claro que sim. Gente séria não gosta de peixeirada. É por isso que o '
Porque no te callas' do rei de Espanha não é já um videoclip de sucesso no
you tube. Na produção televisiva da era moderna,
'tele-espectador' é a tradução de sentido exacto para
'voyeur'. E a '
peixeirada' para as classes C e D é a '
polémica' para as classes A e B. Este é o abc do produtor e a regra primeira do criativo de televisão, que precisam de trabalhar como toda a gente. Daí ser a regra de ouro do director de programas.
Onde está então a linha que separa audiências e fracassos, direitos e deveres, bom senso e sucesso, lixo e qualidade, peixeiras e polemistas, sensatez e animação? E quem a define? E porque não se aplica, se está definida? São três boas perguntas para as quais não tenho respostas, que imagino só possam ser encontradas nos milhentos estudos de audiência que enchem as gavetas dos programadores e determinam a cultura dos portugueses. O ovo e a galinha ou a pescadinha de rabo na boca, causa e consequência numa ordem por definir. No Portugal contemporâneo são os programadores de televisão quem melhor domina a ciência dos gostos nacionais. Eles é que sabem o que o povo gosta.
Por isso Sílvio Santos, meu ex-patrãozinho e ainda dono do maior império de televisão do Brasil, o SBT, hoje com centenas de pequenas emissoras de rádio e TV em cadeia, apareceu ainda recentemente em todos os meios de comunicação, em directo da varanda do seu apartamento de Miami, sentado numa cadeira de rodas, ar frágil, manta sobre os joelhos e côr amarelada no rosto. Veio informar o mundo que estava em estado terminal, com um cancro, e que por isso iria vender o SBT. As lágrimas caíram e as acções do grupo subiram. E quando o mundo soube que era mentira, muito tempo depois e pela voz do próprio, entre outras, Sílvio resolveu o assunto com a risada gutural e aquele mesmo sorriso cintilante com que cai num aquário em directo, ou manda comer merda por dinheiro no seu programa de domingo. E não é que acabou tudo numa grande salva de palmas?
É este o grande encanto da televisão, o fermento das vidas reais, a atracção do número mágico e o vírus que matou Svetlana em Espanha. É o básico que vende, quanto mais primário melhor, que o boçal é cultural e é barato. Dá milhões. Ninguém quer qualidade, que é difícil e cara. Custa milhões. Por isso nada se inventa, tudo se decalca, o mau em cima do pior. A morte de Svetlana em Espanha é a morte das vidas reais, fiéis, infiéis e teledifundidas, de programa em programa, de telejornal em telejornal, até ao colapso final de toda a decência numa qualquer megaprodução em directo do inferno das nossas piores expectativas. Mais um campeão de audiências, naturalmente.