Peggy Sue casou-se, ontem à noite. Lembram-se do filme? Katheleen Turner era Peggy, Nicolas Cage o seu par, o impagável Charlie. E depois havia os outros, os eles e as elas coleguinhas de liceu e amigos de sempre, visitados pelo enredo da história em dois tempos, dois estádios das suas vidas com um hiato de trinta anos a separar um, o tempo do liceu, a juventude dos sonhos e de todas as expectativas, do outro, o tempo presente, a realidade de cada um dos personagens depois de crescidos, casados, com filhos, empregos, responsabilidades. Vidas passadas em vez de vidas em aberto. Pois Peggy Sue casou-se, ontem à noite. Quase trinta anos passados sobre o dia da minha última aula no Liceu Camões, alguns dos que comigo estavam nessa sala, nesse tempo e nesse dia, referências únicas de uma idade que fui, juntaram-se ontem para um jantar comemorativo do assinalável facto de estarmos todos vivos, um hábito ritualizado por este grupo nos últimos treze anos. Exactamente, treze anos, vinte e oito jantares : hardly a joke! Ontem fui convidado e aceitei. Assim, Peggy Sue casou-se, ontem à noite. E eu lá dei por mim, a assistir a tudo e a ser quem fui (por vários e doces instantes) sem deixar de ser quem sou por um instante que fosse, god forbid. Está bem feito, isto.
A noite aconteceu como se tudo se passasse no aconchego de um filme de nós, na segurança do registo em película, esse protector temporal, e com uma banda sonora de época, perfeita, síncrona, característica. Um por um os meus personagens traziam memórias, episódios, importantes pedaços da minha vida, presos por laços de incontáveis histórias minhas em comum com cada um dos que ali estavam, a enfeitar a lapela das suas jaquetas de época, todos iguais, todos diferentes, a farda que nunca tivemos.
É certo que uns foram mais significativos que outros, ao tempo, na vida do rapaz que eu era, como é natural. Tiveram mais peso na minha própria formação, teremos sido mais amigos, talvez. A adolescência é feita disso mesmo, amigos para sempre sim, mas à vez. E nos entretantos aquela pureza, irrecuperável, da entrega total e incondicional do nosso 'eu' juvenil àquele que nos ouvia e entendia, sonhos incluídos, claro, que essa era a primeira partilha obrigatória, sem a qual nada nos nossos dias faria sentido. Hoje, olhando um por um os rostos que faziam o meu sorriso há trinta anos atrás, procuro neles para além da patine dos anos, para lá da tensão do momento, leio-lhes nos olhos como eles nos meus, adivinhamo-nos uns aos outros no mais imperceptível da linguagem corporal, nas inflexões pontuais, nas interrogações mudas que já trazem resposta dada e nos sorrisos que dizem tudo o que há para dizer. No saber de nós, o essencial de cada um, uns sobre os outros, um conhecimento que trazemos aprendido desde que aprender era tudo o que fazíamos na vida. E bem.
Durou umas horitas, aquele jantar. Está a durar um pouco mais, esta minha viagem ao passado na boleia vertiginosa deste escorrega da memória. Ando perdido por mil nove e carqueja, persigo a juventude como um louco, vivo em Lisboa, a vida está cara, fumo às escondidas e namoro o que posso. Ou seja: se não fossem os cabelos brancos, os meus e os deles, as costas que me doem, o disparate de vida que esbanjei e mais uns dois ou dez pormenores, eu cá dizia que praticamente não mudou nada nestes trinta anos. Quase nada, mesmo. Nadinha, nadinha.