Lisboa em camisa. Na Ópera.
Em espectáculo, um protesto em coro de plateia tem que ter um toque de boçalidade, algo de rude e grosseiro para atear aquela multidão e puxar-lhe o fogaréu do descontentamento para lá de todas as regras de etiqueta social. Afinal somos matéria inflamável antes de sermos gente educada, antes do polimento, antes das convenções, do treino de obediência das boas maneiras, no fundo. E nem sequer é lá muito no fundo, em muitos casos, às vezes basta raspar um nadita e lá salta a capinha fina que mantém a besta oculta em alguns de nós, meio nadita em muitos casos. Não é um espectáculo agradável, quando acontece a sério, digo eu.
A única pateada com graça de que me lembro, assim de repente, aconteceu em casa do Conselheiro Torres, ali à Rua dos Fanqueiros, se a memória não me atraiçoa, quando o teatrinho da família onde brilhavam a menina Sabina e do Dr. Formigal, um drama pungente de nome 'O Pedro', foi abalado pela demora do elenco, pelas birras do Gil aguadeiro, pelo acumular de casacos no cadeirão destinado ao Bismarck português e pela impaciência da assistência, vinda lá da repartição do Conselheiro e que rebentou numa pateada d'arrebimbomalho magistralmente descrita por Gervásio Lobato no seu delicioso 'Lisboa em Camisa'. Não estive nessa, lamentavelmente.
Tal como não estive no CCB na passada sexta-feira, noite de "Crioulo, uma ópera cabo-verdiana". Sei que o espectáculo estava marcado para as nove horas da noite. Sei que começou com a mesma meia hora de atraso com que deram entrada no camarote VIP os dois primeiro-ministros, de Portugal e de Cabo Verde, que eram esperados mas não para fazer esperar a restante audiência, que lotava o recinto. E foi assim que aconteceu a famosa vaia, a tal que recebeu José Sócrates e comitiva naquela noite e se prolongou por alguns minutos, que devem ter parecido uma eternidade aos visados. Depois parou, claro, veio a ópera e o fim de festa, igual aos outros. Mas os ecos do assobio estavam lançados e com vento de feição a vaia cresceu de tom e de registo, engrossar é o termo: engrossou. E engrossou mesmo, o resto é o que se sabe, o que se leu e o que se ouviu e ouve até à náusea, quase-quase. Palpite atrás de palpite sobre o que Sócrates devia ter feito, o que não devia ter feito, o que pensou e não pensou e devia ter pensado, enfim, as razões do assobio em número incomparavelmente maior que o das maneiras existentes para preparar bacalhau, por exemplo. E qualquer dia em maior número que os próprios bacalhaus, pelo caminho que a coisa leva. É o que eu digo, um destes dias dou por mim a gostar do Zé, salvo seja e passe a expressão. Porque pena dele já quase tenho, tal é a pobreza confrangedora do moralismo hipócrita que dita este tipo de ataques. É Lisboa em camisa, não outra vez: a de sempre, apenas.