O meu amigo Daniel de Sá é assim mesmo, se não levar uma cutucadelazinha de vez em quando lá se esquece dos amigos e pronto, passam meses sem que se saiba do mestre. Mas num repente ele está de volta, como se nunca tivesse ido a lado algum, como se nada fosse nada e a sua escrita fosse tudo, tudo aquilo que importa. E não é que no fim das contas é exactamente assim, sem tirar nem pôr? Veja-se a história que traz de desagravo, tipo ramo de flores, por exemplo. «Vai com foto e tudo para que conste que é verdade o que lá digo. Pelo menos no que toca ao tocar. A casa onde o bisavô do Craig Mello viveu antes de emigrar, e onde nasceram vários dos seus tios-avós, é a que fica rigorosamente porta com porta em relação à minha. Vai um abraço. Sem condições.» Viram, viram? Agora digam-me, faço o quê, digo o quê, depois disto? Pfff. Um maganão, é o que ele é. Um amigo, grande. E depois escreve bem com'ó caraças, que é o que irrita mais.
Em baixo: "Um Nobel na Maia"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá
Um conto de fadas ou de fados?...
Se as fadas existissem, talvez há um pouco mais de um século alguma se tivesse condoído de um esforçado carroceiro que, duramente, trabalhava para sustentar a família que lhe ia crescendo ano sim ano não. Ela poderia tê-lo feito enriquecer de um momento para o outro. E o novo rico passaria a andar de landó e viveria feliz num palácio doirado.
Os fados costumam levar muito mais tempo a cumprir-se. Eugénio de Mello cansou-se da pobreza, e partiu sem saber bem para onde. Prometiam-lhe a abundância para si e para os seus. Que já eram tantos que lhe recusavam a entrada dos cinco filhos. Deus facilitara-lhe ligeiramente a vida, chamando para Si um dos pequenos. Mas ainda assim Eugénio teve de fingir que um deles fazia parte de uma família amiga, que o declarou como seu na chegada a um mundo dito novo mas que tinha leis estranhas. Eram os Estados Unidos da América, uma pátria feita por emigrantes. Que só começou a enriquecer quando, no século XIX, uns milhões de alemães, de irlandeses e de judeus a procuraram como se todos eles buscassem a Terra Prometida. Levaram-lhe o rigor da organização, a força do trabalho, a poupada administração das finanças.
Os fados foram compondo a sua obra. Eugénio trabalhou nos caminhos-de-ferro, o seu filho Frank, o primeiro dos vários que ainda haveriam de nascer na América, foi plantador e vendedor de árvores de Natal. O seu neto James, ou Jim, como ele assina, licenciou-se em Paleontologia quando aquele em que se cumpriria o conto que poderia ser de fadas já havia nascido: Craig, que em criança gostava mais dos grandes espaços livres e de passeios de bicicleta do que da monotonia do estudo. Mas foi por esses caminhos que começou a formar-se o espírito do cientista. Que, durante anos, trabalhou com amigos sábios e tão curiosos como ele até uma descoberta que lhe valeria o prémio Nobel aos quarenta e seis anos de idade. Com a simplicidade própria da verdadeira sabedoria, Craig Mello diz que esse longo e árduo trabalho foi explicado por algumas estações de televisão americanas em uns segundos apenas…
Foi então que a fama estranhamente lhe despertou o desejo de conhecer a humilde terra de que provinha uma parte da sua linhagem. Acompanhado pelo pai, a mãe, a mulher, as duas filhas, um irmão e uma sobrinha, cumpriu-o no dia nove de Julho. Teve uma recepção entusiástica nessa que é um pouco a sua terra, a Maia. Acolhido no belo Solar de Lalém com a música do Belaurora, não recusou o convite de se juntar ao grupo, tentando marcar o ritmo. Depois peregrinou pelas ruas onde o bisavô viveu, e comoveu-se olhando as casas em que Eugénio de Mello morou, a pia do seu baptismo e as imagens e os altares perante os quais terá rezado. Mas, antes de entrar na igreja, sentara-se nas escadas do adro, tal como o resto da comitiva, que incluía o Presidente do Governo Regional dos Açores e sua Mulher, para assistir a uma inesperada exibição de uma marcha de São João. A Junta de Freguesia saudou-o como era devido e merecido, e declarou pai e filho, simbolicamente, cidadãos honorários da Maia. Os descendentes de Eugénio de Melo e de Maria da Glória, sua bisavó, ofereceram-lhe um jantar em que tanto parecia estarem a ser homenageados aqueles como o Nobel e a sua cativante família. Parte da ementa fora escolhida pelo próprio Dr. Jim Mello, que se lembrava do fervedouro que a avó fazia e dos chicharros que fritava ou assava. Era meia-noite, hora dos momentos mágicos, quando se despediram.
Craig voltou à pátria onde nasceu. Continuará a partilhar a sua sabedoria com os alunos e a dividir o seu tempo com a investigação científica. E o pai, que foi director assistente do Museu Smithsonian, em Nova Iorque, não deixará de cultivar, como Frank de Mello, as árvores que vende pelo Natal.
(foto: Rui Matos / Ver Açor)