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Sete Vidas Como os gatos

More than meets the eye

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Sete Vidas Como os gatos

22
Ago09

Um Nobel na Maia

Rui Vasco Neto

O meu amigo Daniel de Sá é assim mesmo, se não levar uma cutucadelazinha de vez em quando lá se esquece dos amigos e pronto, passam meses sem que se saiba do mestre. Mas num repente ele está de volta, como se nunca tivesse ido a lado algum, como se nada fosse nada e a sua escrita fosse tudo, tudo aquilo que importa. E não é que no fim das contas é exactamente assim, sem tirar nem pôr? Veja-se a história que traz de desagravo, tipo ramo de flores, por exemplo. «Vai com foto e tudo para que conste que é verdade o que lá digo. Pelo menos no que toca ao tocar. A casa onde o bisavô do Craig Mello viveu antes de emigrar, e onde nasceram vários dos seus tios-avós, é a que fica rigorosamente porta com porta em relação à minha. Vai um abraço. Sem condições.» Viram, viram? Agora digam-me, faço o quê, digo o quê, depois disto? Pfff. Um maganão, é o que ele é. Um amigo, grande. E depois escreve bem com'ó caraças, que é o que irrita mais.

 

Em baixo: "Um Nobel na Maia"

Sete vidas mais uma: Daniel de Sá

 

 

Um conto de fadas ou de fados?...
Se as fadas existissem, talvez há um pouco mais de um século alguma se tivesse condoído de um esforçado carroceiro que, duramente, trabalhava para sustentar a família que lhe ia crescendo ano sim ano não. Ela poderia tê-lo feito enriquecer de um momento para o outro. E o novo rico passaria a andar de landó e viveria feliz num palácio doirado. 
 
Os fados costumam levar muito mais tempo a cumprir-se. Eugénio de Mello cansou-se da pobreza, e partiu sem saber bem para onde. Prometiam-lhe a abundância para si e para os seus. Que já eram tantos que lhe recusavam a entrada dos cinco filhos. Deus facilitara-lhe ligeiramente a vida, chamando para Si um dos pequenos. Mas ainda assim Eugénio teve de fingir que um deles fazia parte de uma família amiga, que o declarou como seu na chegada a um mundo dito novo mas que tinha leis estranhas. Eram os Estados Unidos da América, uma pátria feita por emigrantes. Que só começou a enriquecer quando, no século XIX, uns milhões de alemães, de irlandeses e de judeus a procuraram como se todos eles buscassem a Terra Prometida. Levaram-lhe o rigor da organização, a força do trabalho, a poupada administração das finanças.
 
Os fados foram compondo a sua obra. Eugénio trabalhou nos caminhos-de-ferro, o seu filho Frank, o primeiro dos vários que ainda haveriam de nascer na América, foi plantador e vendedor de árvores de Natal. O seu neto James, ou Jim, como ele assina, licenciou-se em Paleontologia quando aquele em que se cumpriria o conto que poderia ser de fadas já havia nascido: Craig, que em criança gostava mais dos grandes espaços livres e de passeios de bicicleta do que da monotonia do estudo. Mas foi por esses caminhos que começou a formar-se o espírito do cientista. Que, durante anos, trabalhou com amigos sábios e tão curiosos como ele até uma descoberta que lhe valeria o prémio Nobel aos quarenta e seis anos de idade. Com a simplicidade própria da verdadeira sabedoria, Craig Mello diz que esse longo e árduo trabalho foi explicado por algumas estações de televisão americanas em uns segundos apenas…
 
Foi então que a fama estranhamente lhe despertou o desejo de conhecer a humilde terra de que provinha uma parte da sua linhagem. Acompanhado pelo pai, a mãe, a mulher, as duas filhas, um irmão e uma sobrinha, cumpriu-o no dia nove de Julho. Teve uma recepção entusiástica nessa que é um pouco a sua terra, a Maia. Acolhido no belo Solar de Lalém com a música do Belaurora, não recusou o convite de se juntar ao grupo, tentando marcar o ritmo. Depois peregrinou pelas ruas onde o bisavô viveu, e comoveu-se olhando as casas em que Eugénio de Mello morou, a pia do seu baptismo e as imagens e os altares perante os quais terá rezado. Mas, antes de entrar na igreja, sentara-se nas escadas do adro, tal como o resto da comitiva, que incluía o Presidente do Governo Regional dos Açores e sua Mulher, para assistir a uma inesperada exibição de uma marcha de São João. A Junta de Freguesia saudou-o como era devido e merecido, e declarou pai e filho, simbolicamente, cidadãos honorários da Maia. Os descendentes de Eugénio de Melo e de Maria da Glória, sua bisavó, ofereceram-lhe um jantar em que tanto parecia estarem a ser homenageados aqueles como o Nobel e a sua cativante família. Parte da ementa fora escolhida pelo próprio Dr. Jim Mello, que se lembrava do fervedouro que a avó fazia e dos chicharros que fritava ou assava. Era meia-noite, hora dos momentos mágicos, quando se despediram.
 
Craig voltou à pátria onde nasceu. Continuará a partilhar a sua sabedoria com os alunos e a dividir o seu tempo com a investigação científica. E o pai, que foi director assistente do Museu Smithsonian, em Nova Iorque, não deixará de cultivar, como Frank de Mello, as árvores que vende pelo Natal.
 
 

 (foto: Rui Matos / Ver Açor)
19
Ago09

Sol maior

Rui Vasco Neto

A minha boa amiga Soledade Martinho Costa anda em festa lá por casa, no Sarrabal, que completa mais um ano de existência. A festança é das rijas, tipo casamento cigano, um dia começou e depois logo se vê quando é que acaba que aqui ninguém está com pressa, os convidados são de luxo, a anfitriã um doce e a mesa é farta de boa leitura, há que prolongar este prazer e saborear condignamente cada naco de letras. Hoje, por exemplo, é mais um bom dia para a visita, é Daniel de Sá quem faz as honras da conversa com um primor de recado, coisa de luvas. Ora espreitem: «Gosto do cheiro das letras. Entre a possibilidade do ecrã , e da página no livro ou no jornal, prefiro a página. Mas a maior parte da escrita que hoje se faz viaja no espaço virtual. Chega a dar a impressão de que se escreve no nada. Talvez por isso haja quem desça nos blogues à mais baixa condição da expressão humana. Sem respeitar valores éticos ou sentimentos morais.» Estão a ver?

 

Escritora notável com obra vasta publicada, mulher de rara sensibilidade e fino trato, a Sol está a ter a festa que merece e eu bato palmas, pois sei que foi com zelo de fada que a minha amiga preparou cada pormenor com que nos recebe. Teve ainda a gentileza de me convidar e eu tive o privilégio de poder deixar colaboração modesta, ainda o casório ia na igreja, por assim dizer. Melhores vieram depois de mim e continuam a chegar, como vêem, neste mês de aniversário. Vale sempre a pena a visita ao Sarrabal, mas esta quadra festiva é verdadeiramente imperdível. A gente vê-se por lá, fica combinado. 

18
Ago09

Portugal é atchim, santinho, nada a fazer.

Rui Vasco Neto

Foi a 11 de Junho último que a OMS decidiu aumentar o nível de pandemia da gripe A (H1N1) para o nível 6, o nível máximo correspondente a pandemia instalada, declarando ainda na ocasião acreditar que "a pandemia de gripe A deverá circular no mundo entre um a dois anos". Em Portugal, nessa altura, qualquer caso era notícia pela raridade, e somavam-se menos de cinco casos no final da primeira quinzena subsequente ao anúncio da OMS. O país não reagia, ia reagindo, com mais cautelas do que aquelas que ia pondo na prática de prevenção da nova gripe. 

 

Entretanto passaram dois meses, pouco mais. E muitos, muitos mais casos. Por esta altura já toda a gente percebeu que este vírus é mais perigoso para a saúde pública do que toda a equipa de Oftalmologia do Hospital de Santa Maria junta, enfim, quase mais perigoso, talvez. E os casos já não são raros, antes aparecem numa média superior aos cem casos por dia, mesmo nestes dias de sol, ainda longe dos meses tradicionalmente gripais. As autoridades de saúde vêm repetindo esta mesma constatação, a gripe vai chegar em força mais cedo do que se espera, tentando desdramatizar o inevitável junto de uma população que parece insistir em ignorar o cenário de pandemia que estamos a viver de facto. Como se a coisa não estivesse comprovada, ainda. Como se não existisse, pronto, nem entre nós nem para nós, muito menos. Somos atchim, nada a fazer, é atchim Portugal, santinho. Há-de ser o que Deus quiser e pronto, seja. Incrível, não é?

Pois é. Mas é atchim.

08
Ago09

O último dos maganos

Rui Vasco Neto

Já não há talento ao vivo, para nos encantar com novas criações, vindo desse trio de ases que me ensinou a arte da televisão ao mostrar como se fazia tão bem o Zip-Zip, como se conduzia um público pela comunicação, do riso à lágrima, do silêncio à gargalhada, para descomprimir,  até à explosão final num enorme aplauso, minutos de pé, tudo à conta de uma genuína intuição de berço, ainda Portugal era a preto e branco e as vedetas de televisão uma escassa meia dúzia de pioneiros. Tudo mudou na arte, dessa altura para cá, e muita da mudança se terá ficado a dever ao talento desse trio famoso e singular. Trio apenas lendário, daqui para a frente, pois dos tais três que vos falo um já tinha morrido e outro vivia morto quando hoje o terceiro se foi e a notícia se soube: morreu Raul Solnado. Não, não era para rir, desta vez.

 

O meu mundo ficou mais pobre, é certo, o pessoal e o profissional. Portugal ficou órfão, órfão de pai na sua cultura, no seu humor, esse humor que tanta vez nos arrasta, carrega em ombros e obriga a galgar os dias, tudo por umas palminhas, às vezes quando a sopa é água e os afectos tão escassos e miseráveis, tanta, tanta vez... Raul Solnado era um senhor que tinha graça, muita graça, não era um comediante. Era um de nós e sabia ser todos, mimava qualquer de nós com uma mestria única de grande senhor do povo. Eu perdi uma referência, lamentavelmente mais do que um amigo, que tanto nunca fiz por merecer, não tenho pretensões. Mas tínhamos uma ligação cúmplice, há mais de vinte anos, com ponto de apoio num local muito especial, quatro paredes com história na história da vida do Raul: a casa onde ele nasceu, em plena Madragoa, aquele terceiro andar ao Pasteleiro onde há quase oitenta anos abriu os olhos e iniciou esta caminhada que hoje teve um final meramente físico, apenas material. A casa mudou; há muitos, muitos anos que vem sendo o atelier do pintor Silva Palmeira, um amigo comum. Por isso sempre que nos encontrávamos a conversa era inevitável, as suas memórias do Pasteleiro subiam à partilha com aquela emoção inconfundível no Raul, aquela voz embargada, o embalo da gaguez, aquele brilhozinho nos olhos que piscavam, piscavam, piscavam muito, piscavam sempre, como quem pisca o olho à vida, para que esta lhe faça o favor de ser feliz. Simplesmente feliz.

 

Ausentou-se hoje, o Raul. Foi-se do nosso convívio, da festa da vida, dos palcos e dos bastidores, dos copos e das paixões. Nunca do meu coração.

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