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Sete Vidas Como os gatos

More than meets the eye

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Sete Vidas Como os gatos

30
Jun11

10 perguntas, 10 respostas, 10 amigos, 1 inquérito. Ou seja, mais um trinta e um que eu arranjei.

Rui Vasco Neto

Do Pedro Correia (Delito de Opinião, Albergue Espanhol), blogger talentoso e de prática irrepreensível em termos de delicadeza e correcção, meu c'lega de profissão e amigo virtual, chega-me este desafio, a que respondo com gosto. Até porque detesto a pose snob e enjoada de alguns bloguistas que odeiam ser maçados com inquéritos deste género lá do alto das suas níveas torres de marfim, como diz o Pedro no seu post e eu subscrevo aqui, palavra por palavra. Para me poupar ao esforço de inventar? Nada disso, se há coisa que eu gosto é de inventar... A questão é que estas palavras podiam perfeitamente ser minhas, de tal forma dizem aquilo que eu penso. Já estas que se seguem são mesmo minhas, são as que fazem as tais dez respostas como era pedido. E que aqui ficam dadas com todo o prazer.

 
 

1. Existe um livro que relerias várias vezes?
Existem vários que já li e reli e de entre esses alguns que voltarei a ler e reler sempre, como 'Os Maias' do nosso sempre actual Eça, 'O Amor em tempos de cólera' e 'Cem anos de Solidão', ambos de Gabriel Garcia Marquez (e dois bons exemplos de releituras que faço como outros escolhem fazer vinte flexões ou o jogging matinal), 'O Processo' de Kafka e, fundamental, 'O Princepezinho' de St. Exupery. Com jeitinho arranjavam-se mais uns quantos, pois a releitura faz parte da leitura, para mim, acho até que inconscientemente já vou contando com ela no acto (frequente) de ler com sofreguidão e sem me deter para saborear... 'já cá volto', digo-me sempre. E volto, invariavelmente.

2. Existe algum livro que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste e nunca conseguiste ler até ao fim?
Oh, sim, para minha grande frustração foi (e é) o caso do 'Memorial do Convento'... e já desisti.

3. Se escolhesses um livro para ler no resto da tua vida, qual seria?
Pois, a tentação do 'Livro do Desassossego' é grande... mas não, all things considered devo indicar a Bíblia como resposta mais próxima da minha verdade. Afinal, para mim nunca será demais ler o que diz para ver se finalmente encontro naquilo que não diz algumas das respostas que procuro há tanto, tanto tempo... Quer-me parecer que o resto da vida não seria tempo a mais para cumprir tal tarefa.

4. Que livro gostarias de ter lido mas que, por algum motivo, nunca leste?
Todos aqueles, incontáveis, que gostaria de ter lido mas que por algum motivo nunca consegui ler...

5. Que livro leste cuja “cena final” jamais conseguiste esquecer?
Huumm... deixa cá ver.... hum... talvez 'O Perfume', de Patrick Suskind, um final fantástico para Jean Baptiste Grenouille, a personagem central, que é partido aos bocados e comido por miseráveis sem-abrigo alucinados pelo efeito do perfume que ele próprio tinha criado e para esse momento colocado no seu corpo e nas suas roupas... Entre vários adjectivos possíveis, 'inesquecível' é seguramente uma boa escolha para um desfecho destes. 

6. Tinhas o hábito de ler quando eras criança? Se lias, qual era o tipo de leitura?

Ler era mais que um hábito, era pouco menos que a sobrevivência... Vejamos, tipo de leitura é uma abordagem difícil, em termos de preferências nunca tive um tipo de leitura como nunca tive um tipo de música, o gostar foi sempre tão ecléctico que nunca houve como empurrá-lo para dentro dos limites de um qualquer estereotipo para facilitar a resposta a esta e outras perguntas. Do Tio Patinhas à Enciclopédia da Mitologia Grega eu devorava tudo o que aparecesse, embora com algumas paixões fixas, claro, a saber: Lucky Luke, Asterix, Blake&Mortimer, Ric Hochet, Mafalda, Mandrake e Fantasma foram sempre os destaques na BD, depois tudo quanto era História (a do Egipto em particular, ah! os faraós...), a inevitável Enid Blyton dos Cinco e dos Sete mas também do Gordo e dos seus companheiros da colecção 'Mistério', tudo o que consegui apanhar de Erle Stanley Gardner/A.A.Fair, Rex Stout, Frank Gruber e Agatha Christie nos policiais, e muitos outros casos isolados mas marcantes por tantas razões como exemplos, como a trilogia Sexus/Plexus/Nexus e ainda o 'Trópico de Cancer' de Henry Miller, todos quatro de enfiada e na mesma altura, o inolvidável 'Tai Pan' de James Clavell (que já revisitei mais do que uma vez em adulto), Jack London e o seu 'Apelo da Selva', 'O Prémio' de Irving Wallace, tudo o que consegui apanhar de Pearl S. Buck e muitos, muitos outros.

7. Qual o livro que achaste chato mas ainda assim leste até ao fim? Porquê?
Há vários, também, mas posso destacar o caso do 'Bobo' de Alexandre Herculano (sendo que alguns dos outros que eu citaria para este caso seriam também do mesmo autor...) Ah, sim, e um ou outro bocejo camiliano também, talvez.

8. Indica alguns dos teus livros preferidos.

Bem, alguns deles, quiçá alguns dos mais significativos, já estão referenciados na resposta à questão sobre a releitura, lá em cima... sendo que faltam bastantes e de 'tipos' bem diferentes, sei lá, Tom Sharpe é incontornável no humor com 'Wilt' a abrir a lista, 'O erro de Descartes' de António Damásio noutra categoria, naturalmente, os eternos Asterix e Lucky Luke ainda e sempre na BD (sim, pois, já sei: não cresci, certo?), 'Tia Júlia e o escrevedor' de Vargas Llosa, e mais uns quantos entre todos aqueles de que me vou lembrar logo a seguir a ter publicado estas respostas...
9. Que livro estás a ler?

'O Livro da Consciência', de António Damásio e nos intervalos 'Notícia de um sequestro' de Gabriel Garcia Marquez (em segunda ou terceira leitura, já não sei) para arejar as emoções e os sentimentos... :-))

10. Indica dez amigos para responderem a este inquérito.

Dez amigos, hein? Huumm..., vamos lá então e seja o que Deus quiser, seguem os nomes: o meu estimado barbeiro, Luis Novaes Tito, da 'Barbearia do Senhor Luís', o Samuel do Cantigueiro, o Shark do Charquinho, a Soledade Martinho Costa do Sarrabal, o Valupi do Aspirina B, o Carlos Enes do Fragmentos do Apocalipse, a Laura Ramos do Delito de Opinião, o Nuno Miguel Guedes do 31 da Armada, o Tomás Vasques do Hoje há Conquilhas e mestre Daniel de Sá, um ex-7Vidas agora no EspólioPara todos segue este meu convite e um forte abraço de solidariedade blogosférica.

29
Jun11

Eu e os meus feromônios, esses demónios.

Rui Vasco Neto

Florbela queria amar, amar perdidamente, lembram-se? Eu lembro-me.

Lembro-me das palavras e do sentir que elas evocam, marcam, definem com uma mestria única e inexcedível. É a benção do génio, que toca as palavras e as torna imorredouras, para sempre únicas e especiais. São palavras de amor, apenas algumas das possíveis entre as muitas outras que ao longo dos tempos os poetas fizeram suas para cantar esse estado de graça que nos incendeia o coração e nos transforma em seres maravilhosos, os eleitos da paixão e por ela eternamente abençoados... enquanto ela durar, claro. E aqui bate o ponto, lamentavelmente, aqui se define a grande limitação deste querer que é sonho e apetite, atracção e desejo, conquista e desafio maior da condição humana.

Tão efémero às vezes, tantas e tantas vezes tão curto, tão pouco...

 

 Florbela queria amar, amar perdidamente, e eu próprio não digo que não queria igual, mais perdidamente ainda, até, se possível. Queria e quero, pois as memórias que foram ficando comigo dizem-me hoje que sempre que tal magia me tocou eu nasci de novo e vivi diferente, fui único e especial, quase feliz, um dos eleitos da paixão e por ela abençoado para sempre, para sempre...

Eternamente, enquanto durou.

 

 

 

Credo! Que sonho estranho ando eu a ter, por estes dias e noites. Sonhei que estava apaixonado, vejam só a desgraceira que me armou Morfeu quando me apanhou de costas. Eu, imaginem: babado, pateta de paixão, absolutamente de quatro por um sonho bom de gente, sorriso lindo com coração lá dentro e a bater por mim num corpo de paraíso, desenhado, esculpido, burilado na medida exacta do meu desejo. Nascido para mim, que há horas felizes. Instalado em mim, nos apelos do cheiro, do toque, dos sabores, em absolutamente todas as variantes do sentir. A coisa mais absurda que imaginar se possa, como vêem. Muito provavelmente um equívoco, é o mais certo, que cedo se esclarecerá.

 

E então lá andava eu, rindo por tudo e de nada, manhã à noite em particular, sorriso de orelha a orelha, numa felicidade que não existe porque não pode existir, não pode ser possível, só nos livros ou nos sonhos ou nem nos sonhos nem nos livros, sei lá eu. E ela igual, o mesmo desvario, quase pior, coração ansioso, sempre, a todas as horas em que se não está quer estar, comigo, connosco, porque de repente só o 'nós' faz sentido e nenhum dos eu's tem mais graça sozinho, é um facto. Uma lamechice pegada, saborosa, uma chatice, irresistível, um estado de felicidade a um passo da perfeição, que não existe. Porque ninguém merece tanto, afinal. É por isso que deve ser um sonho, só pode ser, concluo aliviado. E porquê o alívio? Ora, porque não quero andar assim na rua, cara de parvo e a gostar de toda a gente, a achar que o mundo é lindo, que a vida vale a pena e mais as flores e as plantinhas e os passarinhos e essas merdas assim. Não, por favor. Não, sim?

 

Para mim chega, quero o meu humor de cão de fila outra vez de volta, aquele que me protegia da vida e do mundo e dos outros e deste tipo de porras da paixão, exactamente, este perigoso tipo de perigo que mata mais que o cigarro, muito, muito mais. Quero voltar a rosnar, parar com este ronronar que não vai comigo, que diabo, tenho uma reputação a defender, sou um duro, caramba!

 

Amanhã vou a um médico de canalhas, está decidido.

 

(texto publicado aqui, em Abril de 2009)

29
Jun11

A escolha de Sofia

Rui Vasco Neto

 

Foi em 1999 que Sofia Pinto Coelho, jornalista especializada em temas de justiça, contou ao país a história de um ex-director geral da Polícia Judiciária que era suspeito de ter violado o segredo de justiça, numa reportagem em que exibia uma cópia da acusação constante do processo, para que não restassem quaisquer dúvidas sobre a exactidão da informação reportada. Por essa escolha profissional a jornalista foi processada judicialmente e acusada de ter 'divulgado cópias de actos que constavam do processo', uma conduta 'proibida e automaticamente condenada pelo Código do Processo Penal' então em vigor. Sete anos depois, em Outubro de 2006, o tribunal considerou-a culpada e condenou-a ao pagamento de multa pela infracção cometida. Sofia escolheu não aceitar a decisão e resolveu recorrer para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sediado em Estrasburgo. Depois foi só esperar.

Agora, doze anos passados sobre os factos, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem veio dar razão à jornalista, numa sentença que faz questão de  sublinhar que as autoridades portuguesas não explicam a razão pela qual a divulgação daquelas cópias prejudicou o inquérito, nem como foi violada a presunção de inocência do acusado. Os juízes do tribunal de Estrasburgo consideraram ainda, pelo contrário, que apresentar aquelas cópias serviu «a credibilidade das informações transmitidas, atestando a sua exactidão e a sua autenticidade».

É certo que esta decisão é passível de recurso, pelo que pode não ter acabado ainda a aventura da prática jornalística pelos insondáveis critérios da justiça nacional. Mas com esta decisão Sofia Pinto Coelho tem já assinatura garantida no novo lema deontológico da profissão: escolher compensa.

27
Jun11

Conversa da treta, óculos verdes.

Rui Vasco Neto
Se havia dúvidas que a comunicação é uma arte, esta notícia que se segue elimina-as totalmente. Aliás nem é bem a notícia, é mais o combinado título/notícia/comunicado que faz as delícias de qualquer amante da arte de comunicar e oferece a todos os outros uma definição rigorosa e original do verbo "sacar" ou mesmo uma nova e polida versão da expressão "ir ao bolso". Isto sim, é a conversa da treta em todo o seu esplendor! Ora vejamos.
O título diz quase tudo, dá-nos logo uma boa ideia do essencial: «Estacionar o carro em Lisboa vai ficar mais caro a partir de 4 de Julho». Depois vem a notícia propriamente dita: «Estacionar o carro em Lisboa vai ficar mais caro. Os preços vão subir já a partir do próximo dia 4 de Julho e os aumentos podem chegar aos 50% em determinadas zonas da capital.» Perante isto falta o quê, apenas? Os preços exactos, claro, o rigor do tostão nas novas tarifas ditadas pela EMEL e já agora, quem sabe, uma justificaçãozinha para este aumento que dificilmente pode atribuido à crise, essa mãe de todos os aumentos que agora castigam sem dó o quotidiano dos portugueses. Afinal, aumento de custos da matéria prima é que não podia ser de certeza, não me consta que tenha subido o aluguer das ruas, nem mesmo com a crise... E é aqui que vem à tona todo o imenso talento do artista que redigiu o comunicado da EMEL que faz a notícia e explica aos lisboetas a verdadeira razão do esbulho que aí vem. Reparem no léxico requintado, no floreado irrepreensível, no  estilo escorreito da prosa que tudo explica: «Houve necessidade de adequar o tarifário de estacionamento, até aqui igual em toda cidade, ao comportamento da oferta e da procura.» Irra, impressionante, não? É de uma honestidade desarmante, reconheça-se. Preto no branco a EMEL explica-se bem: onde houver mais procura a oferta passa a custar o que a gente quiser, e porquê? Porque podemos fazê-lo e porque o lisboeta não tem outro remédio senão pagar. Ponto final. È evidente que estas são palavras minhas, cruas e pobres, na explicação da EMEL as palavras têm outro sabor, outro conforto... É outro cantar, decididamente: «A empresa criou um sistema com três zonas, aposta num tarifário de progressão linear simples e de fácil compreensão por parte do público e na acessibilidade média em transportes públicos, quer dentro de Lisboa, quer da periferia para o centro.» Como se pode ver, tudo muda de figura quando é assim bem explicadinho, numa progressão linear simples e de fácil compreensão por parte de um público que só pode estar já meio grato, nesta altura do comunicado. Ou seja, no ponto certo para receber a traulitada dos cifrões, mais uma vez dada com inexcedível doçura: «O custo nas chamadas zonas vermelhas onde existe elevada rotação de estacionamento e marcada por intensa concentração de comércio e serviços e elevada oferta de transportes públicos, passará a custar 1,60 euros na primeira hora (em vez dos habituais 0,80 euros) e de 3,29 euros na segunda hora. A partir daí, o condutor é obrigado a abandonar o local de estacionamento, já que o tempo limite de paragem nestas zonas passa a ser de duas horas. As avenidas de Berna, João XXI, República, António Augusto Aguiar e Liberdade, assim como as praças de Londres, Príncipe Real e a zona Baixa/Chiada compõem esta zona.»
A notícia continua com os números relativos às zonas amarela e verde e mais uns quantos quilitos de palha pelo meio, os senhores podem consultar tudo aqui, todos os pormenores deste fait divers urbano, de casaca ligeira e banal como quem não quer a coisa, como de resto vestem todas as pequenas notícias sobre os grandes negócios. Para que a gente não se sinta intimidado pelo aspecto e pape tudo como quem gosta e ainda agradeça no final. E essa é a fina arte do comunicador, o suco da barbatana. Como que a expressão académica daquela velha técnica que se usa para que os burros comam a palha seca e pouco atractiva. É só pôr-lhes uns óculos escuros que a palha fica logo verdinha e apetitosa, como esta notícia. Com os asnos nunca falha, dizem.
26
Jun11

A opinião sem delito

Rui Vasco Neto

'Delito de opinião' é para mim um daqueles blogues de visita habitual, por lá concordo e discordo em proporção que desconheço e que pouco ou nada importa na circunstância, faz de resto parte do encanto, até. O que realmente importa aqui é a viagem, são sobretudo os pequenos pormenores que se descobrem no caminho, como este esgrimir de argumentos sobre o Acordo Ortográfico que se pode (e deve) ler aqui, na íntegra, mas que, pela importância do tema e dos argumentos terçados, não resisto a transcrever, só um pequeno mas pedagógico excerto deste pequeno mas pedagógico desacordo sobre o acordo. Absolutamente imperdível, digo eu.

 

 

De VSC a 19 de Junho de 2011 às 19:05

(..) Fiquei bastante entusiasmado com a existência de argumentos substanciais da parte dos pró-acordo. Nunca ouvi nenhum. Importa-se de pôr aqui? Ficar-lhe-ia muito grato.

De Laura Ramos a 19 de Junho de 2011 às 22:31

VSC, eu é que agradeço A sério que nunca ouviu argumentos susbstanciais vindos do lado favorável? Eu já (..). É só mesmo porque, como sou contra, habituei-me a opor as minhas razões aos que o defendem e a ter de ouvi-los. Então vá: 1) actualização 2) aproximação da ortografia à forma fonética e consequente simplificação da aprendizagem 3) unificação da escrita entre os povos falantes da mesma língua e  "empowerment" daí resultante 4) edições únicas etc, etc.
De VSC a 20 de Junho de 2011 às 16:57
Vejamos então os argumentos sérios. O 1º seria a actualização. Mas, e pergunto com curiosidade genuina, actualização de quê? Actualização da ortografia? Ou, como se escreveria na grande língua franca da cultura, da ciênca, da diplomacia, da comunicação planetária do  séc. XXI, orthography's actualization (em francês, actualization de l' orthographe)? E "atualização da ortografia", como começaram a escrever os brasileiros - via decreto -  por volta dos anos 30 do séc. passado, em obediência a ideias francesas do séc. XIX é "atualizado"?
Creio que há por aqui qualquer coisa que não bate certo, a não ser que se considere que o Inglês e o Francês são línguas pouco actuais, que não evoluíram, ao contrário do português da América do Sul, que sofreu "evoluções" a golpe de decreto.
Passemos ao ponto 2. Simplificação da aprendizagem? É um intento que poderia prosseguido por Viana, que começou a delapidar a língua em 1904. Hoje, sabe-se, até pelas imagens do cérebro  de crianças enquanto  olham  para palavras que ainda não conhecem que a palavra é apreendida no seu todo: ter 3 ou 6 letras é rigorosamente a mesma coisa, «cmoo se porav fmiaclnte» O Zimbabué, que usa o horroroso inglês,  tem um índice de alfabetização bastante superior ao do Brasil - que está "atualizado" há 80 anos - isto se a actualização consiste afinal em estropiar palavras.
Ora, ponto 3- Unificação . Unificação com grafias facultativas?  com grafias duplas? Que dizem os profs? "Os negociadores do Acordo autorizam duplas ou múltiplas grafias no interior de cada país, com base num critério da pronúncia, que em nenhuma língua pode ser tomado como propriedade identificadora dum sistema linguístico e da(s) sua(s) respectiva(s) norma(s) nacionais, mas sempre e apenas de uma sua variedade dialectal ou social" (Doutora Inês Duarte, professora catedrática de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa); e outro professor catedrático da Universidade de Lisboa, Doutor João Andrade Peres: «dois alunos portugueses, em Portugal (ou brasileiros, no Brasil, etc.), sentados lado a lado, ou dois professores em salas contíguas seriam livres de usar a seu bel-prazer as grafias alternativas. Em última análise, é deixada ao livre arbítrio de cada cidadão a escolha da grafia, pondo-se em causa a função da língua escrita como factor de coesão social». É a unificação no seu esplendor!
O inglês da América é diferente do de Inglaterra e os dois países nunca fizeram questão de celebrarem acordos ortográficos (creio, até, que seria difícil explicar-lhes o que isso seja! A verdade é que o inglês está fixado desde o séc. XVII e a nível de imprensa norte-americana, desde 1800 e poucos. É que a ortografia mantêm-se e não se degrada quando os falantes e escreventes têm acesso à norma (escolarização, hábitos culturais, etc). A «evolução ortográfica» a mata-cavalos é uma ideia da propaganda dos acordistas que conta com a nossa ignorância e medo provinciano de estar desactualizado...
«Empowerment», diz? Gostava  que me desse uma ideia daquilo em que concretamente consistiria. O facto de em Portugal se começarem a escrever os nomes dos meses com letra pequena irá fazer o quê? Que milhares de pessoas de repente comecem a aprender portugues, ou desatem a ler Frei Luís de Sousa?
Quanto às edições únicas, temos, desde logo, as duplas grafias. Qual seria a utilizada? Isto para não falar já da diferença lexical e da maior ainda diferença sintáctica. Isto para não dizer que são as editoras que se devem adaptar à língua e não a língua às editoras.
Não vejo, por isso, qualquer argumento sólido - e mil vezes melhor do que eu poderia responder um especialista.
Além de tudo isto há alguns outros aspectos importantes e inquietadores: o modo como foram ignorados os pareceres negativos de organismos oficiais portugueses, a barreira à discussão efectiva da questão, a falta de democraticidade, o autoritarismo, a leviandade com que se tem procedido, a falta de respeito  por algo de tão complexo quanto é a nossa língua materna e que deveria incomodar profundamente todos ( e incomoda: há centenas de milhares de portugueses, dos 16 aos 90 anos que protestam activamente. Não é um assunto de «séniores»: felizmente, cada vez mais se pensa como Fernando Pessoa que chamou crime à "reforma" de 1911.
 
De Laura Ramos a 20 de Junho de 2011 às 18:34
VSC , gostei de o ler, por mim era o comentário da semana. Escolheu foi o alvo errado, porque - não sei se percebeu - volto a dizer que sou contra o AO. Já assinei petições e tudo, veja lá.
Sem mais, adianto-lhe esta demonstração simplista e simbólica da minha discordância: considero absurda e inútil uma alteração ortográfica que, em nome da unificação (?), me obriga a escrever infeção ", quando os brasileiros continuam a deter a ortografia pré-acordo, "infecção". E que me obriga a escrever Egito " e a denominar os seus oriundos de "egípcios". A célebre queda das consoantes mudas ou sonoras, consoante as pronúncias...
A legitimidade reformista que plasma a aproximação da ortografia à fonética sempre teve opositores, sabe bem disso. Mas tem vencido... (e, que me lembre, na minha vida já passei por 2 alterações).
O linguista Herculano de Carvalho (UC) chegava ao ponto de dizer, nos anos 60/70, que a forma correcta de pronunciar e/ou escrever era pura e simplesmente aquela que o falante adoptasse, em seu bom modismo. Isto é: ordem para regressar à confusão de 500... quando o português se escrevia conforme a cada um aprouvesse (o que dava um jeito enorme... mesmo que as consequências não fossem grandes, dado que a aprendizagem era privilégio restrito).
Quanto ao facto de o valor da actualização da escrita não ser importante, não concordo. Claro que é, e não considero que depaupere a língua. Senão, ainda escreveríamos saüdade ", mãi " pharmacia " e outras coisas, bem bonitas, por sinal, mas que agora parecem não fazer sentido. E se não fazem...
Como vê, não sou especialista nesta matéria. A minha opinião é de leiga, mas de leiga portuguesa.
Coisa muito diferente, contudo, é aferir a competência, ou não, de um SE, consoante ele é ou não a favor do AO.
E dizer que não assistem argumentos substanciais a ambas as partes.
Qualquer AO suscitou contraditório: basta ler os documentos, expurgados da espuma dos dias.
http:/ www.portaldalinguaportuguesa.org / action =acordo.
Saüdações blogosphehricas.
De VSC a 20 de Junho de 2011 às 22:28 
Agradeço a simpatia. Sobre "actualizações": pharmacy e pharmacie são palavras do Inglês e do Francês do Séc. XXI.
Se em Portugal se escrevesse pharmácia  estaríamos em consonância com duas línguas de dois países cultos. Ou será que os idiomas ingles e francês estão «desactualizados» em relação ao português do Brasil? É essa a referência?
Hoje sabe-se que o crime de 1911 - assim lhe chamou Fernando Pessoa, que fez alguma coisa pela Língua portuguesa -, não compensou, assim como as modificações mais radicais do Brasil, em 1929: com   Portugal, é um  caso de país com altas taxas de analfabetismo e iliteracia.
Não há por isso, qualquer "actualização": o «acordo» traduz-se, para o Português de Portugal, no abandono da tradição ortográfica das línguas cultas europeias para passar a obedecer ao  que os «acadêmicos» brasileiros, traduzindo mal do pensamento francês do séc. XIX e em nome de doutrinas e teorias à época já serôdias, impuseram aos brasileiros nos anos 30 do século passado. Querer impor essa ortografia ao Portugal de hoje, não é «actualização», mas a aceitação de um mero provincianismo nacionalista de... outro estado (Vd. REFORMA ORTOGRÁFICA E NACIONALISMO LINGÜÍSTICO NO BRASIL http://www.filologia.org.br/revista/artigo/5(15)58-67.html)
De Laura Ramos a 21 de Junho de 2011 às 00:39
VSC: proponho que funde um forum...
Quanto ao que acrescenta: "pharmacie, pharmacy"
(e abstraindo da suma questão "quem imitou quem?"... ... virá do tempo da colonização francesa da corte de Orange... não virá?...), tenho simpatia pela ideia da coincidência gráfica, mas mais nada. Quem sabe, serei eu já um produto degenerado das sucessivas reformas, hélas... (mas tive latim, o que me ajuda a ver mais claro).
E sabe? Nem me faltam as referências geracionais e afectivas: sou uma cultora empedernida do francês (era o que estava a dar na minha geração), agora reconvertida em escrava adaptada à ditadura do inglês. Mas nem por isso me comove a perda das formas aproximadas das ditas línguas evoluídas e cultas, tais como "effeito", "bello","sceptro", "fructo" e "signal"...
Finalmente (e finalmente, mesmo!) não acho que o umbiguismo europeu seja assim tão fantástico. Tendo a valorizá-lo, confesso, mas com reservas.
Quer um exemplo? Não faz qualquer sentido, hoje em dia,
fazer equivaler o peso do francês ao do português, simplesmente porque a balança se inverteu e a nossa língua é, hoje em dia, infinitamente mais importante e competitiva. A francofonia é uma força decadente (e acredite que tenho pena). Lá vai mantendo pergaminhos porque é uma das línguas fundadoras da velha CEE, e dos corredores da diplomacia, mas pouco mais do que isso. Uns enclaves em África e na América...e nada mais.
Mantenhamo-nos alerta, em todos os sentidos da questão: nem aculturação, nem monolitismo.
 
De VSC a 20 de Junho de 2011 às 23:33
 
Pontas soltas.
Sobre o «contraditório»: não houve sequer um início de discussão séria que fosse  ANTERIOR à decisão tomada.
E há inexplicáveis silêncios desde logo sobre os pareceres oficiais negativos que fora ignorados sem explicação.
Quanto às competencias  que são poderes para prosseguir fins: podendo serem estes incompatíveis com outros idênticos do Brasil, tenho a maior das apreensões, dado o que transcrevi. «O Brasil tomou a dianteira?» Em quê? Haja pudor!
 
 
De Laura Ramos a 21 de Junho de 2011 às 01:04
Concordo com a sua denúncia sobre os silêncios estratégicos. Aliás, como acontece com tudo o que envolve os circuitos do poder nas decisões especializadas. Quanto à discussão anterior à decisão oficial, se bem que não alargada, lá foi existindo... Relembro vários programas a que assisti na RTP2 há anos atrás, com a presença de algumas referências que envolveram, entre outros, alguns meus conhecidos (caso do Prof. Aníbal Pinto de Castro). O facto de correrem na RTP2, aliás, é só por si eloquente.
Penso, sinceramente, que para além do tédio que o assunto provocava, ninguém acreditava verdadeiramente que o AO fosse avante.
- Irá?
Dura lex, sed lex.
Espero pelo seu forum, VSC. Até lá.
24
Jun11

Palavras, preciosas palavras.

Rui Vasco Neto

Às voltas com esta implacável obrigação de estar vivo vou cumprindo etapas à razão de uma por dia. Sempre em busca de orientação, de explicação para tudo, de pistas que me levem à descoberta de algum sentido para este existir que é condenação e privilégio, alegria e desespero, luz e escuridão. Que é tudo e tudo pode ser, até nada. Por feliz acaso saltam-me ao caminho as palavras de mestre Agostinho da Silva, figura incontornável das minhas referências e uma seta sempre segura para qualquer viajante que busque direcção para os seus passos, ou simplesmente a alegria para os dar. Que procure enfim a felicidade. Leio as palavras que nos deixou escritas e recordo as muitas outras que me entregou de viva voz, embrulhadas para oferta naquele rir sem dentes que até hoje ecoa na minha memória, juntamente com a frase que me repetia invariavelmente em cada conversa: "A cabeça só serve a quem tem cabeça", dizia-me rindo e sempre a sério, antes de repetir olhando-me nos olhos: "A cabeça só serve a quem tem cabeça". Nunca quis perceber o que me queria dizer com aquilo. Não faço a mais pequena ideia, até hoje.

 

 

«Não creio que se possa definir o homem como um animal cuja característica ou cujo último fim seja o de viver feliz, embora considere que nele seja essencial o viver alegre. O que é próprio do homem na sua forma mais alta é superar o conceito de felicidade, tornar-se como que indiferente a ser ou não ser feliz e ver até o que pode vir do obstáculo exactamente como melhor meio para que possa desferir voo. Creio que a mais perfeita das combinações seria a do homem que, visto por todos, inclusive por si próprio, como infeliz, conseguisse fazer de sua infelicidade um motivo daquela alegria que se não quebra, daquela alegria serena que o leva a interessar-se por tudo quanto existe, a amar todos os homens apesar do que possa combater, e é mais difícil amar no combate que na paz, e sobretudo conservar perante o que vem de Deus a atitude de obediência ou melhor, de disponibilidade, de quem finalmente entendeu as estruturas da vida(..). Os felizes passam na vida como viajantes de trem que levassem toda a viagem dormindo; só gozam o trajecto os que se mantêm bem despertos para entender as duas coisas fundamentais do mundo: a implacabilidade, a cegueira, a inflexibilidade das leis mecânicas, que são bem as representantes do Fado, e cuja grandeza verdadeira só se pode sentir bem no desastre; é quando a catástrofe chega que a fatalidade se mede em tudo o que tem de divino (..). Por outra parte, é igualmente na desgraça que se mede a outra grande força do mundo, a da liberdade do espírito, que permite julgar o valor moral no desastre e permite superar, pelo seu aproveitamento, o toque do fatal; não creio que Prometeu estivesse alguma vez verdadeiramente encadeado: talvez o estivesse antes ou depois da prisão; mas era realmente um espírito de liberdade e um portador de liberdade o que, agrilhoado a montanha, se sentiu mais livre ainda; porque podia consentir ou não no desastre, superá-lo ou não, ser alegre ou não. (..) No fundo é o seguinte: é necessário, ajudando a realizar o homem no que tem de melhor, que a mesma energia que se revelou pela física no mundo da extensão, se revele pelo espírito no mundo do pensamento e domine a primeira vaga de energia, como onda rolando sobre onda mais alto vai. E mais ainda: que pelo momento de infelicidade, o que não poderá nunca suceder no caso da felicidade, entenda o homem como as duas espécies ou os dois aspectos de energia se reúnem em Deus. Só por costume social deveremos desejar a alguém que seja feliz; às vezes por aquela piedade da fraqueza que leva a tomar crianças ao colo; só se deve desejar a alguém que se cumpra: e o cumprir-se inclui a desgraça e a sua superação.»

 

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

 

20
Jun11

Ser criança no inferno

Rui Vasco Neto

Eu não conheço Taimargara, nunca estive nessa que é a principal cidade do distrito de Bas Dir, um pedaço do noroeste paquistanês situado junto à fronteira afegã, território de forte influência taliban e particularmente abalado pela rebelião islâmica. Não conheço mas imagino o horror, só pode mesmo ser um retrato do inferno um lugar assim, onde um bombista suicida pode ser uma criança de nove anos que carrega junto ao corpo franzino oito quilogramas de explosivos e que recebeu ordens precisas para se fazer explodir junto a uma barreira pokicial nos arredores da cidade.

E assim fez, ou tentou fazer. Foi detida a cerca de 50  metros do seu objectivo porque deu nas vistas o seu comportamento 'estranho'. Segundo a polícia, a rapariga contou ter sido raptada alguns dias antes em Peshawar, principal cidade do noroeste do Paquistão, e só depois levada para Bas Dir. "Eles (os raptores) disseram-me para carregar no botão quando estivesse perto de polícias", contou a jovem numa entrevista à televisão nacional. já vestindo o seu uniforme azul e branco de estudante como se fosse uma criança de nove anos igual a qualquer outra criança de nove anos. Como se fosse uma criança, imaginem!

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