Monotonia
Uma bela cavaqueira entre Daniel de Sá e Samuel, do 'Cantigueiro', neste post, derivou para uma meia tertúlia poética, com Daniel a responder a uns versos de Ary dos Santos, citados por Samuel, com esta sua 'Monotonia', dos idos 70: «Estes obviamente não são do Ary. Nem como os do Ary. Por isso retirei do mercado e da minha bibliografia o livrito em que os incluí, publicado em 1979. Chamava-se "Em nome do povo. Amen".» Depois para mim, em recado privado: «Desses poemas (25) fazia parte um, o chamado mesmo "Em nome do povo. Amen", que tem a seguinte passagem: "E houve a sublime certeza/ de que é o povo quem manda/ sem clero nem nobreza./ Mas é com estes ainda que tudo anda." Por incrível que pareça, esse poema e outro ("Nas margens do rio Lento") foram publicados no "Correio do Minho", de direita, e na "Resistência", revista quase ultramontana. E, por causa deles, o Amândio César, que fora o escritor oficioso do regime, ficou muito meu amigo.». Eu, que assistia sem pio da galeria, achei por bem deixar o paleio onde está, mas puxar a poesia cá para cima, para o salão nobre, sempre se está mais confortável. E lê-se melhor, assim.
Em baixo: "Monotonia"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá
Toma a viola o cantor
e canta o povo que sofre.
A palavra do doutor
defende o povo que sofre.
A pena do jornalista
louva esse povo que sofre.
Nas luzes do palco, o artista
Finge que é povo e que sofre.
Nos comícios da ilusão,
bendiz-ae o povo que sofre.
Os maiorais da nação
pensam no povo que sofre.
A poesia do poeta
é pelo povo que sofre.
A riqueza libertada
é para o povo que sofre.
Que a nação só é completa
com todo o povo que sofre.
E o povo, tomando a enxada,
cavando, calado, sofre.
(in 'Em nome do povo. Amen.', Poemas, Ed. 1979)